spoiler visualizarludwig2 13/05/2022
O coração de uma ambiciosa
Machado de Assis, na advertência de 1874 para este livro, diz que seu objetivo principal ao escrevê-lo foi fazer o "desenho dos caracteres", sobretudo o de Guiomar. Ela é uma jovem de origem humilde; perdeu a mãe ainda criança, e passou a viver sob os cuidados da madrinha, a baronesa. Esta também tinha uma filha, que faleceu; depois dessa perda, madrinha e afilhada ficaram extremamente próximas, numa relação quase de mãe e filha. Várias vezes a baronesa afirma que ama mais a Guiomar que a sua filha falecida, e que o sentimento é um amor verdadeiro de mãe.
Guiomar é uma mulher que consegue apaixonar a todos, incluindo os leitores, com a sua beleza, inteligência, e seu charme, sua arte de tratar as pessoas. Uma prova disso é a grande afeição que a baronesa tem por ela: em sua casa, qualquer desejo de Guiomar é uma ordem. Guiomar conseguiu conquistar essa afeição ao longo dos anos. Agora a jovem está chegando na idade de casar-se; assim, ela e sua madrinha estão de olhos abertos para algum potencial marido.
Com todas as suas qualidades, e a herança que receberá da madrinha, pretendentes não faltam para Guiomar. Ao longo da história, conhecemos três: Estêvão, Jorge e Luís Alves. Qual deles vai levá-la para o altar?
Estêvão é um jovem bacharel em direito que conheceu Guiomar quando ela tinha 17 anos, época em que ela era uma “simples aluna-professora” no colégio da tia de Estêvão, na Rua dos Inválidos. Desde o momento em que a viu pela primeira vez, Estêvão se apaixonou perdidamente, mas não sabia se o sentimento era correspondido — Guiomar sempre o tratou fria e ambiguamente. Ele ficou dois anos sem vê-la, terminando os estudos em São Paulo; quando retornou ao Rio de Janeiro, reencontrou-a e passou a amá-la mais intensamente do que antes. Note-se que Estêvão nunca se importou com a classe social de Guiomar, ou com suas origens humildes: amava-a e ponto.
O segundo pretendente é Jorge. Este é sobrinho da baronesa, e é o favorito dela para o casamento. Mais de uma vez, a madrinha diz que o único projeto de sua vida é casar Guiomar com o sobrinho e vê-los felizes assim. Jorge também ama Guiomar, mas o que é atraente para ele no casamento é principalmente a herança da baronesa: como sobrinho, já vai ganhar alguma coisa; casando-se com Guiomar, seus ganhos aumentarão substancialmente, tendo acesso à parcela que a afilhada receberá.
Já o terceiro pretendente é Luís Alves. Ele é amigo próximo de Estêvão e é bacharel em direito como ele. A diferença é que Alves tem muito mais iniciativa: enquanto Estêvão está preocupado em defender a sua cantora de ópera favorita contra as suas rivais (como se ele participasse de um fã-clube no Twitter), Luís Alves está concorrendo a deputado no Parlamento. Como descreve Machado, Estêvão é “tão marechal nas coisas mínimas, como recruta nas coisas máximas”. Estêvão abre seu coração ao amigo: conta tudo o que sente por Guiomar, e todos os seus planos de confissão. Luís Alves, inicialmente indiferente a ela, acaba se apaixonando também, ao perceber que ela é uma ambiciosa — como ele. Porém, é um amor moderado, não impulsivo ou exagerado: Alves sabe controlar as suas emoções e usá-las em favor de seus interesses pessoais.
Por trás de seu amor (verdadeiro) pela madrinha e sua atitude para com as pessoas da sociedade, Guiomar tem seus interesses e sonhos em mente. Ela busca ascender socialmente e casar-se com alguém que a eleve na sociedade: “[...] a natureza e a sociedade deram-se as mãos para a desviar dos gozos puramente íntimos. Pedia amor, mas não o quisera fruir na vida obscura; a maior das felicidades da Terra seria para ela o máximo dos infortúnios, se lha pusessem num ermo. Criança, iam-lhe os olhos com as sedas e as jóias das mulheres que via na chácara contígua ao pobre quintal de sua mãe; moça, iam-lhe do mesmo modo com o espetáculo brilhante das grandezas sociais. Ela queria um homem que, ao pé de um coração juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a força bastante para subi-la aonde a vissem todos os olhos”. Assim, não é de se espantar que Guiomar escolha Luís Alves, homem ambicioso, com seus próprios planos de ascensão social, e disposto a trabalhar para que eles aconteçam, para ser seu marido. Um homem forte e resoluto; um homem que sabe querer.
Pode-se perceber, neste romance, certa crítica à sociedade da época em relação ao casamento: Guiomar tinha sonhos e planos para a sua vida; queria casar-se com quem ela escolhesse, e não com alguém que lhe seria imposto. Essa possível imposição de um marido lhe causa verdadeiro sofrimento ao longo da história, e lhe incomodava muito como a dama de companhia da baronesa, a inglesa Mrs. Oswald, insistia no casamento com Jorge. “Nenhuma consulta, nenhuma autorização prévia; parecia-lhe que a tratavam como ente absolutamente passivo, sem vontade nem eleição própria, destinado a satisfazer caprichos alheios.” A tristeza e o medo de Guiomar é ter que casar com alguém que ela não quer.
Nota-se também uma certa rivalidade entre Guiomar e Mrs. Oswald: são duas pessoas inferiores socialmente à baronesa, que buscam agradá-la de todas as maneiras e conquistar sua simpatia. Oswald é uma mulher mais velha, e como tal expressa opiniões que vão de encontro à juventude de Guiomar, como: “[...] Eu creio que a senhora sonha talvez demais. Sonhará uns amores de romance, quase impossíveis? Digo-lhe que faz mal, que é melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.” Ademais, Mrs Oswald é a única pessoa, além de Luís Alves, que percebe a ambição de Guiomar e os seus ardis.
Por fim, pode-se concluir que Guiomar, apesar de inteligente, ambiciosa e “senhora de si mesma”, ainda assim é uma superficial. Isso se reflete no seu interesse não só pela ascensão social, mas também por ser vista, e ter um amor não íntimo e recluso, mas que seja admirado e invejado pelas outras pessoas. Pode-se imaginar que Guiomar poderia ser uma influencer no Instagram. “Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele sentimento? Era-o até o ponto de lhe não desbotar à nossa heroína a castidade do coração, de lhe não diminuirmos a força de suas faculdades afetivas. Até aí só; daí por diante entrava a fria eleição do espírito. Eu não a quero dar como uma alma que a paixão desatina e cega, nem fazê-la morrer de um amor silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria. Sua natureza exigia e amava essas flores do coração, mas não havia esperar que as fosse colher em sítios agrestes e nus, nem nos ramos do arbusto modesto plantado em frente de janela rústica. Ela queria-as belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres, posto sobre móvel raro, entre duas janelas urbanas, flanqueado o dito vaso e as ditas flores pelas cortinas de caxemira, que deviam arrastar as pontas na alcatifa do chão.”