Arsenio Meira 24/12/2013
Natal Borgiano
Vou me ater aos contos que mais gostei. Melhor, os que mais me marcaram, pois na verdade, gostei de todos. E merecem deferência especial os contos "Pierre Menard, autor de Quixote", "Funes, o memorioso", "A seita de Fênix", "O fim" e "A Loteria da Babilônia".
Além do gosto pelas narrativas curtas e pela poesia, Borges tinha em comum com Edgar Allan Poe a versatilidade de seus contos, do fantástico ao cômico, do drama ao policial. O homem era um bólido. Gênio. Já escreveram isso 895 milhões de vezes. Problema dos números. Escrevo, e ponto. O quarto conto da seção Artifícios é um sofisticadíssimo conto policial ("A morte e a bússola"). Sofisticado leia-se, sem pedantismo, porque Borges nos faz imaginar que terá uma solução mais ou menos previsível (as iniciais dos assassinados formariam o nome oculto de Deus), mas na verdade nos conduz a uma revelação mais sutil e engenhosa, em que os crimes são praticados não por inspiração de uma seita hasídica, mas tão somente pelo desejo do assassino de valer-se do acaso para criar uma armadilha de vingança.
O protagonista é o agente Erik Löonrot, mais dado a pistas e interpretações intelectuais dos crimes do que à busca de evidências banais.
O desenho dos crimes (no caso, o losango) não deixa de ser uma solução interessante para a época em que Borges escreveu, em que assassinatos em série não haviam sido banalizados pelo cinema e pela televisão. O que agrada no conto, no entanto, é a ideia de construção dos crimes seriais a partir do acaso (a frase que a primeira vítima havia deixado sobre a máquina de escrever) e do desejo de envolver a vítima principal num labirinto que irá encantá-lo e conduzi-lo à própria morte. Nenhum assassinato terá tido execução mais literária, nenhuma dupla assassino-vítima terá sido mais borgiana, e é isso, esse elemento puramente lúdico, literário e labiríntico que encanta nesse belo conto policial.
O tema principal do conto O milagre secreto, é a questão do tempo, sua forma e limites. Em que medida o tempo é linear ou cíclico, limitado ou infinito? Um instante é indivisível ou pode compreender uma hora, um dia, a eternidade?
Jaromir Hladík, um escritor de origem judaica, é preso em Praga pela Gestapo cinco dias após a invasão da cidade pelas forças alemãs, em março de 1939. Sua sentença à morte logo lhe é revelada, e ele terá de esperar dez dias para sua execução. Nesses dias finais, imaginará execuções para si (com a expectativa alimentada por um detalhe ocasional, capaz de salvar-lhe o pescoço), buscará consolo na ideia da eternidade de uma noite, de um momento e acabará encontrando o verdadeiro refúgio na ideia de concluir sua única obra que lhe parece digna de permanecer. Hladík dedica-se à tarefa, mas consciente do escasso tempo para concluí-la, implora a Deus um ano mais. Por meio de um sonho, Deus avisa que seu pedido será atendido.
O milagre secreto é mais um conto de Borges construído a partir de uma ideia fantástica e filosófica ou, melhor dizendo, fantástica porque nas fronteiras inapreensíveis do pensamento filosófico. A agonia de Hladík é mais um pretexto para Borges liberar suas deliciosas fantasias sobre o tempo.
No magistral "Ruínas Circulares", Borges conta as conquistas e desilusões do personagem sonhador, que alterna fases de sono permanente e crises de insônia, abstinências de sonhos e sonhos induzidos, sempre desta que é a matéria mais imponderável. Não há referência a livros ou autores imaginários. Tão-somente uma bela idéia desenvolvida em forma de história: a possibilidade de que alguém crie, por meio do sonho, um personagem que se torne real. O protagonista, um aldeão que navega rio abaixo e vive a dormir sob o abrigo das ruínas de um templo, sofre a obsessão: Eis aqui o sonho último do artista, em particular da literatura.
O aldeão faz por fim um pacto com o deus fogo do templo em que se abriga, e consegue criar e fazer viver sua criatura, seu filho. Este deve abandoná-lo, deixando-lhe apenas o receio de que o filho viesse a saber que não passava de produto da imaginação. O final do conto é tipicamente borgiano, circular, infinito, como o título já sugere. Li e reli essa pequena obra-prima. É um caminho sem volta.
Conto tipicamente borgiano, porque mistura livros e personagens reais e imaginários, e nos traz uma idéia central mirabolante e criativa, é Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Um grupo de pessoas cria um país e um planeta imaginário e insere verbete sobre o tema numa enciclopédia de prestígio (como a Britannica) ou mesma edita uma enciclopédia inteira sobre o planeta, com estudos sobre sua geografia, sua história, sua teologia, sua literatura. É um ótimo pretexto para Borges contar-nos as peripécias dos autores anônimos, enfiar fatos que misturam personagens como Bioy Casares e Alfonso Reyes, e falar de uma curiosa língua e metafísica. Uqbar é um país de localização incerta, de fronteiras imprecisas, na Ásia Central, Tlön é um planeta, o Orbis Tertius, onde as nações são arraigadamente idealistas e onde a metafísica é afinal um dos pilares da literatura fantástica.
Em Tlön, predomina a idéia do sujeito único, os livros não são assinados, porque se imagina que sejam produtos de um único autor, intemporal e anônimo. Como num jogo, em que o prazer maior é a verossimilhança, Borges mostra-nos com extrema delicadeza a maneira como surge a idéia do planeta imaginário, as referências aos livros e autores que o dissecam, as peculiaridades do lugar. As descrições do mundo imaginado são deliciosas, como nas cidades invisíveis de Calvino, embora Borges, ao contrário do escritor italiano, deleite-se mais com a criação dos criadores e do processo de criação em si do que com o objeto criado.
Há também um fino humor tanto sobre os americanos (o magnata que escarnece a modéstia de um projeto de criação de um país imaginário e propõe a concepção de um planeta inteiro) como sobre os ingleses e saborosa é a crítica direta às ideologias do século XX, que soa como música num conto tão sutil e inteligente.
Entenda-se ou não como conto, aliás, o leitor "é o sujeito mais livre do mundo", como decretou o nosso genial Nelson Rodrigues, chame-se de narrativa curta ou qualquer outro nome, o fato é que A Biblioteca de Babel, de Borges, é um exercício supremo de imaginação. A Biblioteca é o universo, e se não é infinita, a questão é irrelevante, já que seus limites são inacessíveis ao homem. Não há existência fora dela, ela abarca tudo. Lá estão os homens e todas as possibilidade de combinações de 25 símbolos (22 letras, espaço, ponto, vírgula) em livros de quatrocentos e dez páginas, com todos os idiomas e formas criptográficas possíveis, distribuídos em salas hexagonais que se comunicam por meio de pequenos vãos com outras salas hexagonais ao lado e acima, como uma colmeia perfeitamente geométrica e sem fim.
A grandiosidade do universo é melhor percebida na morte: a sepultuta dos homens ocorre no ar insondável, ao vento da queda do corpo no fosso que atravessa as colunas de hexágonos e nunca termina. Borges aproveita sua Biblioteca para lançar outras imagens geniais, como a idéia do livro cíclico de Deus, cuja lombada envolve uma sala circular, ou do livro de folhas de espessura infinitesimal que poderia conter todos os livros; a idéia do falso predomínio do caos e da falta de sentido sobre a plausibilidade (já que mesmo a esmagadora maioria dos livros com combinações aparentemente aleatórias podem fazer sentido em linguagens que não dominamos; a busca pelos homens do livro sobre seu futuro entre tantos livros sem sentido e tantas biografias futuras falsas de si mesmo; a busca do livro que revela a origem do Universo/Biblioteca...
A Biblioteca de Babel é, ao mesmo tempo, a metáfora da vida de Borges, em que o mundo são os livros, e o melhor espelho de sua imaginação vertiginosa.