mavcarvalho 25/02/2010
Borges e seus Metacontos
Hesitei em escrever sobre Borges, pelo simples fato de ser Borges. Este texto facilmente cairia num grande (e vazio) elogio da obra do autor; ou então, numa coleção de recomendações. Quando comecei a ler Ficções, logo no conto "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", a cada página eu pensava: fulano tem que ler isso, sicrano vai adorar, preciso tirar uma cópia para Mariazinha.
Decidi, então, deixar de lado a crítica (incompetente que sou em fazê-la) e a recomendação (simplesmente LEIAM!) e vou falar um pouco sobre os motivos que levam Borges a ser o autor preferido dos lógicos. Para tanto, vou analisar o tema de dois contos e tratar um pouco da estrutura geral apresentada pelos textos de "Ficções".
Tomemos, em primeiro lugar, o conto "Funes: o Memorioso". Trata-se de uma fantasia a respeito de um homem que, após um acidente, ganha a capacidade de lembrar-se de tudo. Imagine isso! Mais que uma memória eidética, trata-se da capacidade de se lembrar de todos os detalhes e posições, por exemplo, da roseira que vejo enquanto escrevo esta postagem, das diferenças entre um objeto no agora e o mesmo objeto no agora há pouco.
Entretanto, ainda que esta característica pareça, à primeira vista, algo estritamente positivo, Borges nos surpreende ao mostrar que esta memória perfeita é incapaz de raciocinar! Isto acontece porque, tendo Funes o registro de todos os pormenores de qualquer objeto em qualquer instante, ele é incapaz de ver nesses objetos qualquer constância. Ao ver um cachorro e olhar para ele um segundo depois, tantas coisas, detalhes, posições, configuração dos pelos, orelhas, olhos, boca, seu peito arqueado pela respiração, tanto, tanto mudou naquele simples cachorro que Funes não consegue aceitar ser(em) o mesmo cão.
Borges nos diz que Funes é incapaz de generalizar. Além disso, seu mundo não contém um dos princípios da lógica aristotélica:
∀ x, x = x (para todo objeto, vale que ele é idêntico a si mesmo) - Princípio da Identidade.
No mundo de Funes, a ciência seria impossível, pois todo conhecimento seria particular, sem espaço para generalizações (nem mesmo a respeito de um único objeto, pois o Memorioso vê, nele, inúmeros objetos não-relacionados).
Outro conto fantástico é "A Biblioteca de Babel", que descreve um mundo formado por uma vasta (potencialmente infinita) biblioteca habitada por pessoas e com o conjunto de todos os livros possíveis. E que são estes "todos livros possíveis"? Todas as combinações de caracteres possíveis (para simplificar, um único alfabeto, e apenas vírgulas e pontos como sinais de pontuação). Vocês conhecem a idéia: dado tempo suficiente, um macaco numa máquina de escrever chega a digitar Hamlet, de Sheakespeare. Ou seja, na Biblioteca de Babel (em algum lugar dela) está a sua dissertação de mestrado, minha primeira redação da escola, o "Dependência e Desenvolvimento na América Latina" de FHC (nós podemos esquecer, mas a Biblioteca não esquece nunca! - como Funes), tudo isso gerado por puro acaso.
Não consigo dissociar esta imagem de uma descrição dos sistemas vivos que vem se tornando padrão: ilhas de ordem num universo de desordem. De todos os livros da Biblioteca, a quantidade de livros (organizações de letras) aproveitáveis seria minúscula em relação à quantidade de livros apenas com letras agrupadas sem sentido. Em outras palavras: numa distribuição aleatória de letras, a quantidade de distribuições que fazem algum sentido é muito menor que a quantidade das caóticas. Isto é quase uma definição de entropia, em que a quantidade de estados mais desordenados é muito maior que a de estados ordenados; e o ser vivo é, muito claramente, um sistema de partículas organizadas, em baixa entropia, que sobrevive ao gerar desordem no ambiente (e captar ordem dele).
Mas eu queria avançar um raciocínio: se não houver limite de páginas por livro, a Biblioteca contém não só infinitos livros mas também livros infinitos! E mais: se a quantidade de livros for infinita, as quantidades de livros significativos e não-significativos também serão infinitas (desde que tomemos a liberdade de definir como "significativo" um livro que ninguém consegue ler até o fim no tempo de uma vida finita...) Neste caso, a análise do parágrafo acima cai por terra: não podemos mais comparar as quantidades.: todos infinitos deste tipo - chamados "enumeráveis" - têm a mesma quantidade de elementos. Acho melhor colocar um limites de letras para os livros da Biblioteca de Babel.
Além disso, a Biblioteca de Babel tem um catálogo, que faz referência a todos os outros livros (sim, da combinação aleatória de letras também surgiria um catálogo de todas as outras combinações). Ora, pergunto: se o catálogo referencia todos os outros livros, ele é completo? Bom, se o catálogo é um livro, ele deveria constar em si mesmo e, como não consta, é incompleto. Mas, pensando melhor, deve haver um meta-catálogo que referencia todos os outros livros e mais o catálogo original... Mais uma vez, sem um limite de letras por livro, estamos diante de uma progressão infinita.
Se os jogos com o conhecimento e com quantidades infinitas já são suficientemente enlouquecedores, a estrtura geral dos contos de Borges também não é nada simples. As histórias são contadas, geralmente, como "histórias a respeito de histórias". Como escreve o autor no Prólogo do volume:
"Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário".
Ele faz exatamente isso, escrevendo sobre livro imaginários. Por exemplo, o já citado "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" não é um conto sobre o país Uqbar, do planeta Tlön, mas sim um conto sobre uma enciclopédia (criada pela confraria de intelectuais chamada Orbis Tertius) que descreve o país Uqbar do planeta Tlön. O conto é um texto fictício sobre um texto fictício escrito por um grupo fictício: é um metaconto.
A estrutura é semelhante à de "O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam", em que os personagens descrevem um livro que é um labirinto (é quase uma alegoria do hipertexto - esses links que você clica e te levam de texto em texto na web - escrito 50 anos de isso existir) e levada ao paroxismo em "Peirre Menard, autor do Quixote", em que o narrador descreve a tentativa de um autor (mais uma vez fictício) de escrever "Dom Quixote", séculos depois da escrita original de Cervantes, mas com a condição de que o texto seja o mesmo, palavra por palavra! Um metaconto: a descrição do trabalho de um autor que se impõem a reescrita de um livro que já existe, sem copiá-lo, obviamente. Se não tomarmos cuidado, as regressões se tornam infinitas, mais uma vez.
Não é à toa que o bibliotecário cego de Umberto Eco em "O Nome da Rosa" se chamava Jorge...
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