Neto 04/01/2013
O livro que brincava em não me deixar dormir
Foi irresistível comprar os volumes 2 e 3 da trilogia Millennium depois de finalizar Os homens que não amavam as mulheres. O estilo rápido, dinâmico e investigativo de Larsson me deixou viciado e preso a cada página, acompanhando atentamente Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander no primeiro volume. Ir ler imediatamente A menina que brincava com fogo era só o próximo passo lógico.
Larsson volta com seu estilo forte e impactante no segundo volume, apresentando uma trama talvez mais cheia e robusta do que no primeiro, porém o caráter de denúncia me parece um pouco menor. Em Os homens que não amavam as mulheres, acompanhamos denúncias pesadas para a violência contra a mulher e para o mundo financeiro especulativo da Suécia.
O autor largou do mundo financeiro (uma jogada lógica, visto que esse problema havia sido finalizado no primeiro volume) e ateve-se às denúncias de crimes contra as mulheres e adicionou com mais veemência o tráfico e a prostituição de mulheres (incluindo menores de idade) e também uma crítica muito bem fundamentada e que foi a que mais me fez pensar durante toda a leitura: tratamentos psiquiátricos.
Lisbeth Salander não é uma mulher comum. É intransigente, fechada, socialmente à margem (por escolha própria) e bastante fria à primeira vista. Mas já no primeiro volume nos deparamos com uma personagem cheia de força, expressão, caráter, senso de justiça e de uma inteligência arrebatadora. Lisbeth passa muito longe de ser uma retardada mental. Mas é justamente em sua loucura e alienação perante à sociedade que o livro gira em torno.
E uma denúncia que pode passar despercebida durante A menina que brincava com fogo é justamente relacionada aos tratamentos que essas pessoas recebem, que muitas vezes nem precisam de absolutamente nada. Médicos com experimentos perigosos e violentos, sádicos e problemáticos muitas vezes podem estar com as rédeas de uma situação onde o paciente está vulnerável por ser considerado socialmente inapto.
E essa foi a crítica mais arrebatadora que encontrei no livro. Todos sabemos que o cérebro é uma área misteriosa até hoje, onde a medicina avança a passos vagarosos, tamanha a sua complexidade. E então temos juristas, advogados, promotores, policiais e médicos extremistas na frente do indivíduo, questionando sua individualidade e diversidade, condenando ou absolvendo. Infelizmente, na maioria das vezes um comportamento ligeiramente transviado é tido como um desvio de caráter terrível e a pessoa é pintada como louca para a sociedade. Assim sempre aconteceu com quem via Lisbeth Salander de longe, e o livro gira muito em torno disso.
Como já deu para perceber, esse livro é muito mais centrado na difícil Lisbeth (enquanto o primeiro tinha um foco ligeiramente maior em Mikael Blomkvist). Larsson traça durante todo o livro uma personagem muito mais humana do que antes. No início do livro, fui levado a crer que estava vendo um personagem diferente do que eu havia visto, mas só depois pensei que é aí que os acontecimentos do primeiro livro influenciavam: aquela era a mesma Lisbeth, porém mudada. E isso é absolutamente revigorante e traz um frescor enorme ao livro. Não vemos mais um robô capaz de desenvolver raciocínios lógicos somente, mas sim uma mulher, com temores, traumas, forças e fraquezas. Um ser humano, por assim dizer.
Mikael Blomkvist é o outro protagonista do livro, que vai agir como um investigador (Super-Blomkvist – não pense em um personagem com capa e fantasia, por favor), buscando, paralelamente a Lisbeth, resolver os enigmas apresentados no livro, que estão ligados ao tráfico internacional de mulheres, que vão para a Suécia vender seu corpo, muitas vezes enganadas e a contra-gosto.
E esse cenário é um prato cheio para Larsson destilar sua completa ojeriza pelos homens que odeiam as mulheres: estupros, espancamentos de mulheres e absolutamente qualquer tipo de violência contra o sexo feminino pode ser abordado e refletido durante a leitura de A menina que brincava com fogo. E esse nojo por esses verdadeiros calhordas foi transpassado facilmente para mim. Há situações onde não há como negar o desgosto pela raça humana em um geral.
Deixando de lado as críticas e as denúncias e partindo para a trama em si, temos mais uma vez um livro rápido, dinâmico, mas não deixando de ser profundo (essa profundidade está descrita acima). A leitura rápida e prazerosa é uma verdadeira bênção para um romance policial, onde essa dinâmica é necessária, e mesmo assim Larsson não ignora descrições detalhadas dos ambientes e personagens.
Mais uma vez, temos um início extremamente lento (porém de leitura rápida). Para se ter uma noção, a contra-capa apresenta uma breve sinopse, que só vai aparecer no livro lá pela página 200 e pouco! Essa introdução não soa assim tão necessária quanto no primeiro livro, onde uma apresentação dos personagens era muito necessária. E a maioria dos novos personagens de A menina que brincava com fogo vai aparecer após esse quase-meio de livro… não discuto as intenções do autor para criar um elo enorme entre os acontecimentos de Hedestad com o ocorrido no volume 2, mas muita coisa parece até mesmo pura encheção de linguiça nesse início. Com sorte, a leitura é rápida, e a promessa de uma história envolvente é grande.
É impossível não comparar este com o primeiro livro. Eu gostei mais do primeiro, achei uma história mais forte, com personagens mais interessantes em um geral. A menina que brincava com fogo apresenta alguns personagens irritantes e um pouco chatos, com algum destaque até mesmo desnecessário. Mas no final das contas, isso não significa lá muita coisa, pois a trama em um geral é envolvente, e me deixou aflito em diversas partes, pois tem muito mais ação do que no volume anterior.
A trilogia é muito bem montada, certamente, e o final de A menina que brincava com fogo me deixou com vontade de abrir o A rainha no castelo de ar (os livros 2 e 3 estão diretamente interligados, diferente de Os homens que não amavam as mulheres) imediatamente. Mas vou me conter e abri-lo só amanhã, afinal já passa das 2h da manhã e eu não tomo nem 1% do tanto de café que Mikael Blomkvist para conseguir me manter aceso.