Paulo1584 11/06/2021O HOMEM MAIS TRISTE DO MUNDODizem que o sublime é aquilo que constatamos estéticamente dos fenômenos da natureza, algo que nos toca profundamente, como um pôr do sol onde, já escondido no horizonte, denuncia as nuvens cor-de-rosa para efeito em nossas almas. Já o belo, este dizemos das coisas mundanas, ou seja, do que existe em artifício. O belo não “dá em árvores”, não diretamente, pode até ser uma árvore que um artesão arrancou para fazer uma escultura de madeira, mas não é natural, é um artifício, uma interferência do ser humano no mundo, na tentativa de exprimir beleza através da arte.
Na altura da premiação de “o remorso de baltazar serapião”, pelo Prêmio José Saramago, em Portugal, o próprio Saramago falou que o livro era um tsunami: “linguístico, estilístico, semântico, sintático”. Ou seja, constatando que a literatura de Valter Hugo Mãe é uma espécie de “fenômeno da natureza”, com as suas ressalvas. Primeiro, por parte de Saramago, que não é “destrutivo” como um tsunami, as semelhanças são de outra natureza. Segundo, pelo próprio autor, que faz questão de ressaltar que é um artífice, que faz coisas não-naturais, ou seja, tal qual o escultor faz com a madeira, ele faz com a palavra “belas esculturas”, por assim dizer.
Eu me admiro, agora tendo lido dois livros de VHM, com a forma como ele consegue dar um ar natural às coisas mais insólitas possíveis. Falo aqui, em especial, do seu primeiro romance, “o nosso reino”, onde ele emprega uma linguagem e ritmo poético para narrar a história de Benjamim, uma criança de oito anos que queria ser santo, e que, em meio a sua vida trágica e cheia de percalços, vai denunciando as ausências por parte dos homens, a carga excessiva que faz com que as costas das mulheres se curvem, os traumas possíveis de uma guerra, as falácias religiosas, em suma, as contradições do nosso reino.
“mandado para o quarto de castigo fiquei a sentir a santidade e o modo rigoroso como se prepara uma alma para coisas maiores” (p. 68). Essa criança que tem consciência de que para ser santo é preciso sofrer muito na vida, passar por grandes provações. Tal como Jó, que, para quem não se lembra, é quase virado às avessas por parte de Deus, com as carnes dilaceradas e continua, mesmo que as pessoas à sua volta insistam para abandonar um Deus tão mau, continua dando graças ao pai. É nesse tipo de fé que se apega, numa fé que machuca, que torna as pessoas tristes.
“era o homem mais triste do mundo, diziam, incapaz de fazer mal a alguém, apenas metendo dó, com os olhos de precipício como se vazios para onde as pessoas e as coisas caíam em desamparo” (p. 17). Benjamin, junto ao seu amigo amado, Manuel, busca pelo homem mais triste do mundo, querem matá-lo. Esse homem que tem um cão, também o cão mais triste do mundo, e que se abeiram, ele e o cão, aos moribundos, esperando a hora de jogá-los nas costas e levá-los para os rincões da morte.
A morte perpassa o livro todo, sendo um forte motor, por exemplo, para a mãe do Manuel, a dona Tina, perder um pouco as estribeiras, por causa do filho Carlos, que voltou da guerra em Angola e que contador de mentiras sobre aquela terra e as mulheres, acaba sendo jogado nas pedras por um vento, ou uma mão invisível.
É a morte que assombra a tia Cândida, mesmo que ela não o saiba. É a morte que leva os avós de Benjamim e seus irmãos, soterrados debaixo da casa velha e da lama. É a morte que faz com que os tios franceses, gananciosos, voltem em busca do seu quinhão.
É o livro mais triste do mundo?
Não sei. Mas sei que é muito belo. É bonito, simples e poético.
Este livro é prova daquilo que o próprio autor falaria, anos depois, em sua participação na FLIP: “eu não sei se a arte nos deve salvar, mas tenho a certeza de que pode nos conduzir ao melhor que há em nós para que não nos desperdicemos na vida”. É um livro para que não nos desperdicemos na vida.