spoiler visualizarAbduzindolivros 05/07/2023
Um romance desses, bicho. Escrito para ser lido por qualquer pessoa: de leitores simples fascinados por mistérios e investigação a doutores ávidos por se debruçarem e extraírem significados ocultos, investigando as escolhas do autor, tecendo suas próprias teorias, tendo que ler outros livros para entender as minúcias desse livro que com certeza serve de base para muitas outras histórias do gênero...
Ainda bem que sou só uma leitora simples, e consegui aproveitar o que tinha lá e me deslumbrar. Vou tentar falar sobre a experiência, embora me faltem palavras...
O frei Guilherme de Baskerville e seu ajudante Adso são chamados para investigar acusações de heresia em uma abadia na Itália medieval. Contudo, sua presença lá é perpassada por sete misteriosas mortes, ocorridas em sete dias, e a cada morte violenta frei Guilherme é desafiado a decifrar símbolos, códigos e labirintos para salvar inocentes.
Não disse quem, não disse o que hahaha
Já vale a pena ler só pela investigação em si; inspirado no icônico personagem do Conan Doyle, Sherlock Holmes (o sobrenome Baskerville não é à toa, quem curte Sherlock já pegou a referência, e não seria nosso Adso um paralelo do Watson?), frei Guilherme tem tiradas inspiradíssimas para resolver os problemas conforme aparecerem, dando um show de como raciocinar usando a lógica. Só por isso, só por acompanhar o raciocínio e as descobertas do frei, já vale a pena ler.
As mortes são bizarras, e tentar solucioná-las mergulha o leitor em tinas de sangue e na interpretação de símbolos, com os corpos dos monges comunicando uma mensagem: alguém crê que o apocalipse está chegando, e mata seguindo o tema de cada selo que será aberto antes da segunda vinda de Cristo, que revelará toda a verdade; e talvez o faça também para proteger um segredo, um livro oculto na proibida biblioteca da abadia, cujo conteúdo deve ser a chave para justificar tantas mortes. E ficamos às voltas desses signos, tentando interpretá-los junto com Frei Guilherme para descobrirmos a trama.
Mas, não é só isso. Junto com a investigação, somos levados a refletir sobre a hipocrisia de grupos que detêm o poder, julgando as massas, cobrando pelos seus pecados enquanto cometem todo tipo de atrocidades dentro das paredes de seus santuários e utilizam-se de todos os subterfúgios semânticos que conseguem para aplacar sua consciência e minimizar seus atos. É de amargar ver como cada religioso, cheio de piedade, é tão ávido tanto em buscar amparo para julgar as falhas alheias ao mesmo tempo que justifica as suas, que muitas vezes são piores. E, enquanto a Igreja se reúne para debater se Cristo tinha ou não posses, e se é ou não heresia pregar a pobreza e aderir à ela, o povo morre de fome e precisa se prostituir (pecar) para comer.
Uma igreja que estabelece seu poder através do acúmulo de riquezas, influência e sobretudo de conhecimento, de forma luxuriante e orgulhosa, negando ao povo a oportunidade de saber e salvarem-se por si mesmos, porque isso significaria a ruína da instituição que só têm tanta força através do medo. E faria de tudo para preservar qualquer arma que pudesse tirar esse medo de seu rebanho. No entanto, o desfecho da trama mostra uma verdade sublime: tudo aquilo que se tenta controlar e ocultar com a desculpa de proteger, ganha sua própria força e se destrói.
Sem falar sobre tantas outras hipocrisias, preconceitos que atravessam séculos e que facilitam o cometimento de muitos crimes, abusos. E tudo isso em uma narrativa tão bem-feita, tão primorosa, que é fácil se esquecer que estamos lendo um livro escrito na década de 80. Mesmo que tenhamos um conhecimento estereotipado sobre a Idade Média (meu caso, não sou historiadora), tem horas que parece que o Umberto Eco foi mesmo um monge vivendo em uma abadia na Itália do século XIV ? o que quer que isso signifique, fica nítido o conhecimento que Eco tinha desse período histórico, até mesmo quando precisou subvertê-lo.
O livro é uma lição de escrita, mostrando o quanto é importante se escrever sobre o que se domina; utilizar bem as palavras para transmitir a mensagem certa; dar importância ao ritmo das cenas; não inferir características e sentimentos do autor aos personagens. Quando li, tive momentos de tédio e cansaço, e momentos de empolgação. Mas eu sou uma leitora ávida por esses altos e baixos característicos de romances e sagas longas, e quando li o posfácio com a explicação do autor pelas suas escolhas narrativas, fiquei ainda mais impressionada. Como escritora, então, nossa. Nem sei o que dizer, apenas sentir hahaha
Poderia me debruçar pelas quase seiscentas páginas e encontrar diversas referências e possíveis significados ocultos. É um livro riquíssimo que fornece muito pano para manga. Mas, eu sou só uma pessoa que lê bastante, não tenho conhecimento formal sobre literatura e semiótica e, talvez, o pouco conhecimento que tenha seja senso comum. Quando me afasto e observa o panorama geral, o que vejo é: signos podem ter múltiplos significados ou significado nenhum. De nada servem sem uma mensagem, sem interpretação. De nada serve uma mensagem que não encontra um receptor apto a ouvi-la. E conhecimento que se oculta pensando que é assim que se protege, é conhecimento que se destrói. A memória se esvai, o tempo leva tudo, e no final, tudo o que resta são os símbolos, as palavras que contam a história que já se foi no segundo que se passou. E precisam ser registrados, e precisam ser acessíveis, e precisam ser interpretados dentro de um contexto para fazer sentido.
Pelo menos, foi o que entendi. Se está certo ou errado, ainda bem que o Umberto Eco nos deu licença para interpretar suas palavras hahaha
Enfim, gente, é um livro para ser lido, relido, estudado e apreciado. É tenso, tem momentos de tédio, mas também é de uma sutileza, e tem tantos momentos de humor e ironias, que lindeza. Eu me pegava gargalhando, às vezes. O riso surgindo nos momentos de maior tensão ? e isso por si só é mais uma mensagem lindíssima dentro dessa obra cheia de significados, que fala sobre tanta coisa, inclusive sobre si mesma.
Um adendo: eu tinha uma coisa muito importante que gostaria de falar, mas não conseguia elaborar. Terminei a leitura um pouco frustrada por não ter captado todas as referências e pistas que o autor certamente usou para compor o romance. Fiquei tentada a ir caçar resenhas e me debruçar até esmiuçar cada escolha de palavras, cruzar referências etc., para parecer culta, mesmo, saca? Mas, eu tinha dentro de mim a certeza de que não era necessário ficar procurando pelo em ovo e tentar entender cada escolha do autor.
Eu me lembrei de que alguém fez um tweet uma vez falando ?prof de artes que fica falando porque tal artista usou tal cor no quadro para representar alguma coisa. Amg você tava lá quando ele pintou isso? ?Caravaggio usava muitas cores terrosas, mas aqui ele usou o azul para retratar? aí volta no tempo o Caravaggio usou o azul porque acabou o marrom?, e eu li o livro com esse espírito aqui. Tanto que no posfácio o Eco cita um leitor que fez uma análise sobre uma frase usada por um personagem X e repetida por outro Y duas páginas depois, conjecturando sobre o porquê rivais falariam do mesmo conceito em situações diferentes. E, no fim, a verdade simples era que o autor esqueceu que os dois falavam a mesma coisa, foi um detalhe que passou batido na revisão. Simples. Segredo nenhum.
Para mim, entender e observar isso tem tudo a ver com o desfecho, com umas das últimas lições aprendidas por Adso. Não falo mais sobre, não aqui, porque não quero estragar o final para quem for ler; mas, quem já leu, pode me procurar para falarmos, se quiser. Apenas deixo a dica de que não é necessário sentar-se à mesa com os religiosos para debater se Cristo era ou não pobre, ou se ria ou não, porque há outras preocupações e não se chega a uma conclusão forçando-a nas únicas premissas que queremos enxergar ?
Da rosa antiga temos apenas o nome. Recomendo fortemente.