Érika 27/08/2018Tchekhov e a lenta decomposição pela inérciaA literatura russa abunda em mestres, e quanto mais a exploramos, mais bons escritores encontramos. Há, porém, aqueles incontornáveis, cujo renome até tornou possível serem encontrados em todas as bibliotecas. Para o século XIX, parece justo alinhar as cinco figuras abaixo como as mais conhecidas por aqui.
Desses, ainda me faltava um para conhecer, apesar de ler os russos há muito tempo: Anton Pavlovitch Tchekhov (1860–1904), prolífico contista e dramaturgo, com diversos livros traduzidos para português, tais como “A gaivota”, “Tio Vánia”, “O jardim das cerejeiras” ou “As três irmãs”.
Foi essa última peça que eu escolhi na semana passada para meu primeiro encontro com Tchekhov.
“As três irmãs” conta a história da família Prosorov, Olga, Maria (Macha), Irina e Andrei, filhos de um general transferido com o seu regimento de Moscou para a província russa — a peça não especifica onde, mas o Cáucaso é mencionado aqui e ali.
No momento do início da peça, passou-se um ano desde a morte do general, e seus filhos continuam a viver na província, alimentando, entretanto, planos de deixa-la logo. São muito mais instruídos — falam francês, alemão, inglês, e a filha mais nova, ainda italiano. Olga trabalha no liceu local, como professora, Maria está casada com outro professor, Fedor Kolyguin — e já meio infeliz no casamento — e Irina, a mais nova, está completando vinte e um anos, toda empolgada e sonhadora com as possibilidades da vida.
Pelo que se vê, trata-se de uma família rica — ao menos pelos padrões locais — mas eles não se sentem conectados com a localidade onde moram. No primeiro ato, eles comemoram o aniversário de Irina, e sua “separação” da realidade local fica evidente quando percebemos que a família só se relaciona com militares do regimento. Quando Irina recebe um presente do representante da Administração Rural, reage com certo desprezo pelo remetente. Também não responde à corte do Barão de Tusenbach; seus planos de felicidade futura estão fundados no trabalho.
Querido Ivan Romanovitch, agora sei tudo. O homem deve trabalhar, trabalhar até a última gota de seu suor… Cada homem, sem exceção. Está nisso o objetivo e o sentido de sua existência, sua felicidade, sua alegria.
As esperanças de Olga e Irina se concentram na cátedra que o irmão Andrei pretende pleitear para lecionar na Universidade de Moscou. Ao longo do primeiro ato, porém, já vemos nele os primeiros sinais da doença da acomodação, que ameaçará os planos das irmãs. Ele começa a engordar, e está se apaixonando por uma moça local, considerada brega pelas irmãs dele, mas que ele acaba pedindo em casamento no final do ato.
O segundo ato abre já com esse casamento consumado, uns três anos após a primeira cena da peça. Andrei e sua esposa Natacha já têm um filhinho, e a mulher começa a botar as garras para fora, assumindo pouco a pouco o controle da casa, diante da ausência física das cunhadas Olga e Irina — ambas trabalham no liceu agora — e da ausência mental do marido.
Andrei, ao que se vê, assumiu um trabalho na Administração Rural, coisa que antes o repugnava, e os planos de concorrer à cátedra parecem cada vez mais distantes, já que ele estuda cada vez menos e joga cada vez mais, contraindo dívidas. Passa muito tempo tocando violino e isolado em seu canto, como que voluntariamente se recusando a encarar que o casamento não saiu do jeito que ele pensava, e talvez até para não ver o fato de que sua esposa o está traindo com o chefe dele.
Por sua vez, Macha, a irmã do meio, consegue disfarçar cada vez menos seu incômodo com seu marido bondoso, alegre e inteligente, mas meio pedante, bobo e puxa-saco. Isso se deve, em parte, à ‘amizade’ que cresce entre ela e Verchinin, um oficial que chegara à cidade no ato anterior, velho conhecido do pai delas e também infeliz no casamento com sua segunda esposa de tendências suicidas. Ao fim do terceiro ato, fica evidente que a ‘amizade’ deles evoluiu, e Maria até confessa isso às irmãs, entregando-se ao romance.
E assim a peça segue na sua marcha para o final. Vários anos passam, e as irmãs se veem cada vez mais enredadas na comunidade local. Olga tornou-se diretora do liceu, e mora lá agora, tendo levado junto sua ama Anfissa; Irina tem outro trabalho, igualmente desgastante, e aceita casar-se com o Barão Tusenbach mesmo sem amá-lo, numa última tentativa de salvar-se da vida monótona que as consome. Sua cunhada Natália tem uma segunda filha — sabe-se lá se é de Andrei — e governa completamente a casa e o marido, que, por sua vez, hipotecou a casa da família sem consultar as irmãs para saldar suas dívidas, e nem pensa em sair da Administração Rural.
O último ato encontra nossas heroínas lidando com a partida do Regimento para a Polônia. Elas, que já não têm mais vínculo com o Exército, ficarão para trás, perdendo as últimas pessoas com quem gostavam de se relacionar, inclusive seu locatário, o velho médico Tchebutykin. Maria perderá seu amante, e despenca ao se separar dele. Irina ainda tem uma chance de sair dali, por seu casamento com o Barão Tusenbach, previsto para logo.
Mas, como se trata de literatura russa, não dá para confiar que alguém escape livre de desgraça. Diremos apenas que Tusenbach tem um rival metido a Lermontov — e que o leitor desta resenha conclua o que quiser com essa informação, ou vá checar na própria peça o que aconteceu.
Apesar de curta, a peça é bem lenta. Tudo se desenvolve em sutilezas e insinuações, intercaladas em divagações filosóficas bem ao estilo russo, também.
É admirável como, com base nessas mesmas sutilezas e insinuações, e a despeito das limitações impostas pelo gênero teatral, Tchekhov consegue construir tão bem os personagens. A escassez de descrições, ação e expressão corporal, necessária para dar liberdade aos atores, não nos impede de formar imagens claras das figuras que se movem no palco da mente do leitor.
As falas e a microcenas de importância aparentemente secundária nos mostram que Natália Ivanovna é medíocre, manipuladora e prepotente; que Olga é bondosa e protetora; que Macha é um pouco esnobe, é a mais voluntariosa das irmãs, e se sente sufocada e entediada; que Andrei tem um temperamento suave, mas pouco resoluto; e assim os detalhes sobre cada um nos são revelados e se encaixam de maneira a explicar o desenlace, e apontar no sentido de que nada poderia ter sido diferente.
Como um todo, porém, a peça não me agradou. As palavras de Verchinin:
Nós não somos felizes, a felicidade não existe e o máximo que podemos fazer é desejá-la.
…resumem bem a mensagem geral da história. Entendo que a ideia era mostrar o conflito de uma geração (de determinada camada social) que tinha perdido a noção do seu propósito, a esperança em si mesma e também se acomodado ao ponto da incapacidade de fazer algo para mudar a atual realidade. A peça é como o gemido de uma geração em extinção.
E, de fato, Tchekhov deve ter captado bem o espírito da burguesia da época; não é demais lembrar que, no momento da escrita da peça, o czarismo dava seus últimos suspiros e a sociedade russa toda estava em crise, vindo de um século turbulento que lhe sacudira as estruturas sociais, religiosas, artísticas.
Ele também trabalhou magistralmente o sentimento de pessoas presas num círculo mais estreito do que o seu potencial, morrendo em vida diante da sua incapacidade, pessoal e/ou social, de se libertar.
Mas, pessoalmente, não gostei da peça. Foram cento e cinquenta páginas de leitura lenta e arrastada. Achei-a exageradamente dramática e desesperançosa, de uma maneira quase forçada. Não por ser triste — os clássicos russos célebres quase todos são — mas pela insistência com que as mesmas ideias de decomposição, de desânimo perpassam todas as linhas, desmentindo a própria consolação de “ir vivendo e trabalhando” que o autor oferece em um ou outro ponto, convidando a por a fé no porvir.
Talvez tenha sido a obra escolhida. Tentarei alguns contos mais tarde. Por enquanto, porém, Tchekhov ganhou um lugar entre os escritores cujo talento reconheço, mas que não chegaram a me conquistar.
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