spoiler visualizarMarcio 18/11/2012
Trechos prediletos: “Como Woody Allen pode mudar sua vida”
Em 18/11/2012
Título original: “Comment Woody Allen Peut Changer Votre Vie”
Autor: Éric Vartzbed
Ano: 2011
Título no Brasil: “Como Woody Allen pode mudar sua vida”
Tradução para o português: Bluma Waddington Vilar / RJ / Ano 2012
Editora: Nova Fronteira Participações S/A
Extinguir o vulcão.
O trauma tem duas faces. Pode assumir a forma clássica de um acontecimento sórdido, de uma agressão que ultrapassa a capacidade de tratar do sujeito. Pego de surpresa, desarmado, o indivíduo se vê diante de uma experiência intraduzível, que o deixa sem voz. Ele não consegue pensar naquilo, como se a trama da sua vida psíquica tivesse sido rasgada.
A segunda forma de trauma não decorre de um acontecimento externo, mas resulta da súbita manifestação ode uma pulsão eterna. Nesse caso o sujeito sensível é como que “tornado passivo”, “violado” pela força de seu desejo, atacado pela “fera na selva” (Henry James). Aqui a investigação freudiana é valiosa. Segundo Freud, o nascimento dos desejos sexuais e agressivos é em si mesmo perigoso; a violência das pulsões, traumáticas.
Em Geschlecht und Charakter (Sexo e caráter), Otto Weininger cita o exemplo de um adolescente, comenta o autor, passa por “uma crise na qual sente penetrar no seu ser algo estranho, alguma coisa que, sem que ele quisesse, se acrescenta ao que era até então a sua maneira de pensar e de sentir. É a ereção filosófica, sobre a qual a vontade não tem controle; e é por isso que a primeira ereção é sentida por todo homem como algo incompreensível e perturbador”.
Aqui não se trata mais de supressão da história, porém de transbordamento. Não se trata de falta, mas sim de excesso. Nessas circunstâncias, a culpa constitui uma tentativa de solução, de dar forma as forças. O sujeito lida com esse perigo pelo pensamento.
As pessoas humildes e aquelas que não tem qualquer poder de decisão gostam dele. Quando o biógrafo de Woody Allen pediu a opinião de um motorista de taxi, este respondeu: “Olhe só pra ele. É baixo e está ficando careca. É feio e não consegue traçar ninguém. É igualzinho a mim!”
Em 1976, a personagem de Woody Allen aparece numa história em quadrinhos. Vira então um heróis de uma ficção gráfica, assinada por Stuart Hample e traduzida no mundo inteiro. Um pouco por acaso, Dee Burton, uma pesquisadora da área de psicologia, notou que era comum os nova-iorquinos sonharem com Woody Allen. Então ela realizou uma pesquisa universitária. Nesses sonhos, concluiu Burton, os homens costumavam atribuir a figura do cineasta a posição de um companheiro tranquilizador; as mulheres, a de um amante atento e sensível.
Análise ou Lobotomia?
Em “Sonhos de um Sedutor”, o protagonista, interpretado por Woody Allen, se interroga sobre o fracasso de seu casamento. O analista tinha sugerido que o problema de com a mulher era de natureza sexual. “Que bobagem”, responde ele, “como o problema podia ser sexual? A gente nem tinha relações!”.
Os sintomas são solúveis na palavra?
Um dos problemas notórios no tratamento psiquiátrico é que no fundo não desejamos ser curados, nos empenhamos em achar, entre os profissionais dessa delicada ciência, aqueles que sejam menos aptos a nos curar, e estes, permitam-me assinalar, não estão em falta no mercado. – George Sanders, “Memories of a Professional Cad” [Memórias de um Canalha].
Como Freud concebia a mudança no âmbito do tratamento analítico? Por seu oposto, as resistências às mudanças, a vontade no status quo. “Tudo está sempre se movendo”, lamenta Kleinman, a personagem de Woody Allen em “Neblina e sombras”. “Tudo está constantemente em movimento, não me admira que eu fique nauseado”. Sim, a vida é movimento, impermanência angustiante, “anatta” segundo a expressão budista. O desconhecido e o luto associados a mudança raramente são recebidos de bom grado. Levado pela correnteza do devir, o ser humano busca uma ilha de permanência, resiste, agarra-se à boia de seu sintoma.
Depor a própria cruz.
O humor, como sugere Kundera em essência, torna tudo que toca ambíguo, incerto, vacilante. Revela nossa ambiguidade moral, nossa incompetência para julgar a nós mesmos e ao outro, o humor é o entusiasmo pela relatividade das coisas humanas, o estranho prazer derivado da certeza de que não há certezas.
Nessa visão, o riso permite que nos libertemos do sentido em proveito dos sentidos. Ele desempoeira o instante, não o desgasta pela adesão a ideias, a “projeções mentais” (a noção de adhyaropa dos budistas). Em outras palavras, o riso é a arte de tornar habitável a incerteza, de surpreender os juízos: uma libertação de percepção em detrimento das ideias. É uma atenção ao que é. Desse modo o riso neutraliza o poder depressiogênico das “grandes questões”, assim resumidas por Woody Allen: “Para onde vou? Quem sou eu? Oque tem para jantar hoje?” Em “Hanna e suas irmãs”, a personagem dele, Mickey Sachs, trata seu mal-estar com uma terapia da extravagância ministrada pelos irmãos Marx, ou seja, recorre a uma boa dos de “Diabo a quatro”... Mickey sai da depressão quando aceita alguns “talvez”, desiste da sua busca por sentido e se abre ao instante. Em “Interiores”, a personagem de Perl, vive uma situação semelhante. Embora rodeada de intelectuais abarrotados de ideais, ela experimenta e saboreia as sensações, dá chance ao presente, tanto quanto possível.
O humor desmonta as aparências, estilhaça as máscaras, age como um ácido que corrói as proibições e convenções.
Mudar ou voltar a sí mesmo?
“Quero fazer uma grande carreira, casar com um grande homem e ter uma vida notável. É preciso ver longe, é o único meio de chegar lá.” - Mia Farrow, entrevistada aos 19 anos.
“Agora entendo: viver é aprender a perder com a maior elegância possível... e ser capaz de aproveitar tudo o que se oferece a você.” - Mia Farrow, entrevistada aos 59 anos.
Com os filmes de Woddy Allen, rimos, refletimos, gargalhamos e meditamos. Não se limitam ao simples divertimento e podem ter um efeito sobre a vida dos espectadores, porque extraem um saber da nossa condição caótica. E conhecer, como diria Sartre, é mudar.
Como arruinar a sua vida amorosa?
“A única vez em que Rifkin e a mulher atingiram um orgasmo simultâneo foi quando saiu o divórcio deles.” – Gabe em, “Maridos e esposas”.
Em “A última noite de Boris Grushenko”, Natasha lamenta:
Estou apaixonada por Alexei. Ele ama Alicia... Alicia tem um caso com Lev. Lev ama Tatiana. Tatiana ama Simkin. Simkin me ama. Amo Simkin, mas não do modo como amo Alexei. Alexei ama Tatiana como se fosse uma irmã. A irmã de Tatiana ama Trigorian como se fosse um irmão. O irmão de Trigorian está tendo um caso com minha irmã, de quem ele gosta fisicamente, mas não espiritualmente (...).
E como conclusão dessa cadeia de mal-entendidos : - Não quero me casar nunca, só quero me divorciar!
De amplo alcance, a fábula contada no fim de “Noivo neurótico, noiva nervosa” não deixa de se referir também a vida amorosa:
(...) um homem vai ao psiquiatra e diz que o irmão se acha uma galinha. E o médico então pergunta a razão de não tê-lo levado ao manicômio. Ao que o sujeito responde: “Não posso, preciso dos ovos.”
Como se desinteressar da política?
“Mais do que em qualquer outra época da história, a humanidade hoje se vê em uma encruzilhada. Um caminho conduz ao desespero e a absoluta falta de esperança; o outro, à extinção pura e simples. Vamos torcer para que tenhamos a sabedoria de fazer a escolha certa.” – Woody Allen em, “Que loucura!”.
Como estragar sua vida com a religião?
Em desconstruindo Harry, o diretor explora outro aspecto da sua crítica às religiões. Muito diferente da irmã, uma judia integrista, Harry se exaspera com seu conservadorismo religioso: “E, se nossos pais tivessem se convertido ao catolicismo um mês antes de você nascer, seriámos católicos. Todas as religiões (...) são clubes, geram exclusão. (...) Só adotam o conceito de “outro” para que você saiba a quem deve odiar”
“Nasci no judaísmo, mas me converti ao narcisismo”, constata o diretor.
Como suportar o acaso?
Woddy Allen tratou muitas vezes desse tema, pois atribui ao acaso um peso considerável, um papel mais importante que da virtude ou que do mérito. “O acaso e a sorte comandam nossas vidas”, diz ele, “e mais vale ser sortudo que bom; basta pegarmos o avião errado e pronto, tudo está acabado”. A existência é vista como uma imensa loteria na qual o poder individual vai diminuindo com o tempo, até desaparecer. Estamos submetidos aos elaborados caprichos do acaso.
No que diz respeito à paranoia, o sujeito nega os acasos, reage contra a contingência das causas. Não tolera que a realidade escape à sua “racionalidade”. Com base em indícios interpretados de maneira delirante, constrói uma explicação da realidade como um todo. O acaso o ameaça, danifica as teorias, portanto é preciso anula-lo. Manifesta ou oculta, uma casualidade deve sustentar cada fenômeno.
Como não nos tornamos o que somos?
Interpretado por Wood Allen, Leonard Zelig, vale lembrar, é um enigma: espelhando-se nos outros ao sabor das circunstâncias, dos encontros, ele vira negro, na companhia de pessoas negras, obeso em meio a indivíduos obesos, por exemplo. Quando rodeado de músicos, ele se mistura ao grupo e toca um instrumento. Numa tribo de índios, vemos o protagonista vestindo um traje típico, com uma pena nos cabelos trançados...
Psicanalista de origem polonesa, Helene Deutsch foi pioneira na descrição de um tipo análogo de personalidade, que ela batizou de “as if” (como se). Nesses indivíduos a identidade é flutuante, mal ancorada. Eles conseguem se estabilizar apropriando-se da imagem de um outro, espelhando-se de maneira mimética em pessoas próximas. Procurar agir, pensar e sentir como quem está diante deles dá a esses indivíduos uma consistência, um simulacro de coerência. Essa imitação extrema impede a experiência da ruptura, da errância, permite a eles unificar-se, integrar pensamento e sensação.
(...) Essa personalidade não tem de fato objetivos, mas isso não está associado a dificuldade de assumi-los, que é uma dificuldade central das neuroses. Imitar a imagem, as palavras, os gestos do outro, agarrar-se a um texto são modos de concentrar numa direção, canalizar um pouco esses fluxos e de dar a esses indivíduos uma coerência, preenchendo-os.
Helene Deutsch explica a superficialidade de suas emoções: “Aderindo com grande desenvoltura aos grupos sociais, éticos e religiosos, eles procuram, mediante essa adesão, dar conteúdo e realidade à sua vida interior e estabelecer a validade de sua existência por meio de uma identificação.” Na qualidade de camaleões desprovidos de referências internas, eles se fundem ao cenário, não oferecem nenhuma referência ao meio. Esses indivíduos se moldam de acordo com os modismos, os gostos daqueles a sua volta, sem fazer valer uma posição diferenciada.
Para ilustrar esse aspecto, poderíamos distinguir na vocação de ator, ao menos dois tipos de perfil. Há atores que, tendo uma personalidade “as if”, encontram no ofício uma solução fecunda para a própria fragilidade: o papel que interpretam funciona como uma bengala identitária. Não é o caso dos atores que seguem a profissão levados pela clássica fantasia de serem vistos e amados.
Como fugir da realidade?
Um aluno suíço de Freud, o pastor Pfister, certo dia enviou ao médico vienense um presente, uma escultura de bronze: a reprodução em miniatura do monte Cervin. Na carta de agradecimento, Freud comenta bem-humorado: “É mais fácil atribuir a esse monte um significado (...). A escala 1:50.000 é mais ou menos a proporção na qual o destino realiza os nossos desejos e nós mesmos concretizamos os nossos projetos...”
Em “Desconstruindo Harry”, Richard resume: “Mais cedo ou mais tarde, você tem que deixar pra lá todos os desgostos. A vida é como Las Vegas: ora você ganha, ora você perde. Mas no fim, a casa sempre ganha. Isso não quer dizer que você não se divertiu.” Insistindo menos no prazer, a personagem Perl esclarece, no fim de “Interiores”: “Só temos uma vida, e uma vida basta se for bem preenchida.”
Woody Allen ridiculariza a ideia de uma sobrevivência do artista graças às obras, de uma redenção pela arte. A satisfação extraída da criação do filme é válida, mas a posteridade lhe é indiferente. A respeito de sua vida póstuma, de sua permanência “no coração dos espectadores”, declarou: “Prefiro permanecer no meu apartamento...” E, quando perguntado sobre o que gostaria que dissessem dele dali a cem anos, respondeu: “Gostaria que dissessem: ‘Como ele está bem para a idade’”
Enfim, a imortalidade pelas obras não lhe interessa nem um pouco. Para ele a função delas é outra. Como assinalamos, a sala de cinema é vista como refúgio no qual o filme proporciona uma feliz evasão. A semelhança da religião, o cinema é compreendido sobre tudo como uma distorção, uma droga. Woody Allen considera-o uma espécie de delírio, um artifício capaz de suspender as imposições do real. O cinema nos arrancaria ao pesadelo da existência, seria uma recreação, uma trégua na luta cotidiana.
Em “Broadway Danny Rose”: “ – É preciso sentir culpa, ou fazemos uma porção de coisas terríveis. Eu me sinto culpado, e não fiz nada. Como diz meu rabino, somos todos culpados diante de Deus. – Você acredita em Deus? – Não, e é isso que me faz sentir culpa!”
Como acabar com os tratados sobre a felicidade e outros manuais éticos?
Na vida, nunca faltará quem lhe diga como viver. Essa gente sempre tem todas as respostas: oque você deve ou não fazer. Não discuta com eles. Apenas responda: “Claro, excelente ideia.” E faça o que bem entender. – David Dobel, “Igual a tudo na vida”.
Assim, os manuais de instruções éticas seriam inúteis. Quando o assunto é a busca da felicidade, Woody Allen poderia fazer coro com Freud: “A felicidade é uma questão de economia libidinal individual. Nenhum conselho nesse terreno é válido para todos, cada um deve procurar por conta própria o seu modo de ser feliz.”
“Não recebemos a sabedoria”, dizia Proust, “precisamos descobri-la sozinhos depois de um percurso que ninguém pode fazer por nós, do qual ninguém pode nos isentar.” Que cada um componha sua história.