Otto Antonello 08/08/2024
É um livro curto, com uma linguagem acessível e clara, o que torna a leitura relativamente rápida (coisa de uma tarde, se você se dedicar a concluir logo). Apesar disso, é uma obra que deixa um impacto, um ?gosto? por um bom tempo depois de fechá-lo.
Algo que admirei na obra é a capacidade da autora de gerar imersão de forma simples. A narrativa não é cheia de enredos complexos ou metáforas excessivas. É direta e nítida, e talvez por isso retrate de forma tão viva o que se quer apresentar: as agruras dos retirantes.
Como o tema é o mesmo e são ambos clássicos da literatura, a comparação com ?Vidas Secas?, de Graciliano Ramos, acaba sendo inevitável. A principal distinção é que a obra de Rachel envolve muito mais diálogo; os personagens efetivamente ?falam?, o que deixa uma impressão mais vívida sobre o que pensam e sentem. Graciliano, por sua vez, foca (indiretamente) justamente no silêncio e na escassez de palavras trocadas entre os personagens de "Vidas Secas", passando a impressão de que as dificuldades são tamanhas e o foco tão grande em apenas sobreviver que as pessoas mal têm tempo ou condições de desenvolver ambições ou personalidades. Essa não é tanto a abordagem de Rachel, na minha opinião, justamente pela predominância de diálogos, falas e pensamentos explícitos, ao invés de presumidos em atitudes descritas pelo escritor.
Na versão que li, há uma introdução por Adolfo Casais Monteiro que sugere, entre outras coisas, algo que de fato notei na obra e achei interessante: não é um livro com propósito direto de ?militar?. A autora não procura encaixar o que tem a dizer dentro de um discurso específico ou particularmente maniqueísta de ?pobre bom, rico mau?, o que acaba sendo refrescante também.
Isso não quer dizer que não se extraia uma crítica social da obra, claro, mas a sensação que fica é a de que a autora só quis falar sobre algo e te deixa livre para observar uma cena de forma um pouco mais neutra ou isenta. Essa isenção não é total, evidentemente, mas o texto fica natural e agradável de ler. Você percebe que não é uma história de ?bem contra o mal?, e sim uma situação que afeta todos. Não sendo todos iguais, cada um é afetado conforme os recursos que têm para empregar em sua defesa e sobrevivência. Há quem não tem nada e morre ou quase morre; há quem tem um pouco e se vira; há quem está materialmente bem e ajuda; há quem está bem, mas vira o rosto. As pessoas são diferentes, e há espaço para altruísmo e egoísmo.
Outro ponto da história que chama a atenção é a forma como as agruras enfrentadas pelos retirantes são tão profundas e os efeitos da fome tão devastadores que a morte, ainda que muito sentida pelos personagens, soa quase como algo ?aceitável? e natural, a que ao mesmo tempo não se dá tanta atenção. Me causou uma sensação curiosa pensar que alguém possa passar pela situação de enterrar um dos filhos que caiu morto no meio do caminho e só ter que seguir viagem depois de enterrá-lo no chão seco. Em outro ponto, uma passagem que me marcou foi o comentário do pai em resposta à proposta de dar o filho mais novo para a madrinha, com mais recursos, que se ofereceu para cuidar dele: ?É? dê? Se é da gente deixa morrer, para entregar aos urubus, antes botar nas mãos da madrinha, que ao menos faz o enterro??. Imagine por um momento enterrar um filho no caminho e, depois, ser forçado a ?dar? o mais novo para não vê-lo definhar de fome. Terrível! E tudo isso transmitido sem pompa, apenas com uma narrativa direta, sem dramatizações e circunlóquios.
Bem, como nem só de seca trata a obra, podemos aproveitá-la para outras coisas também, como uma imersão nas conversas e preocupações que caracterizavam as relações pessoais na época. Por exemplo, há alguns trechos em que Conceição e dona Inácia discutem sobre o fato de aquela estar lendo livros que não são ?romance que o padre mandou?. Esse e outros momentos e diálogos mostram uma transição geracional de mentalidade: Conceição não se interessa tanto em ser uma esposa prendada, dedicada ao lar; possui aspirações mais parecidas com as de hoje em dia (estudar, ter independência), e enfrenta uma certa resistência conservadora da geração anterior, que acha que ficar lendo tanto livro só serve para ?ficar queimando os olhos, emagrecendo??. Eu acho particularmente curiosa a ideia de o estudo e a leitura ser encarado como um male, um problema! Isso é algo que lembro de ter visto em ?Triste Fim de Policarpo Quaresma? também, quando alguns personagens expressam preocupação com os estudos excessivos do protagonista. Parece que era corriqueira, entre o povo (e não necessariamente só entre as classes mais pobres, ressalte-se), a ideia de que ler muitos livros deixava maluco.
Terminei de ler o livro com muita fome, mesmo tendo acabado de jantar.