HigorM 30/03/2024
"LENDO NOBEL": sobre protagonistas que não passam de coadjuvantes - ou figurantes
Já na primeira linha do prefácio de "Sula", eu pensei que estava diante da melhor leitura do ano, pois a justificativa da autora, Toni Morrison, para a concepção deste livro foi arrebatadora, se não assustadora. Infelizmente, o livro não passa disso: uma boa intenção de algo não tão concreto assim.
Segundo livro de uma carreira promissora, onde viria, tempos depois, a ser laureada com o Nobel de Literatura, sendo, inclusive, a primeira autora negra, Toni Morrison diz que escreveu Sula como uma forma de protesto ante o cenário socio-racional-literário na época, entre as décadas de 1950 e 1970, em que críticos brancos ditavam o que era a literatura negra, e o que era a boa literatura negra, sendo que eles mesmos não tinham embasamento para compreender tais narrativas, ou por assinalarem que os dilemas de um autor negro - e de pessoas negras, de modo geral - se restringiam aos assuntos repetitivos relativos à escravidão.
Com poucas leituras, mas que chegou a receber críticas de negros e brancos, o livro de estreia de Morrison, "O olho mais azul" foi ignorado pela sua qualidade estética e mensagem a ser transmitida, onde os comentários se restringiram em se certificar da verossimilhança entre a vida dos negros e o retrato ficcionalmente naquele livro, o que, obviamente, não só constrangeu ou frustrou a autora, mas fez com que tomasse atitudes drásticas em seu próximo livro.
"Sula" nasce, então, como forma de protesto: a autora coloca a questão racial e social em segundo plano, para dar lugar a novos temas. Por que falar sobre "os "problemas" dos negros" de sempre, como apontavam sobre a literatura de James Baldwin, Ralph Ellison, Richard Wright e Zora Neale Hurston, quando se podia falar sobre outros assuntos? Por que não falar sobre a amizade entre mulheres quando não há a mediação de homens? Como é, para uma mulher, viver fora de sua comunidade? Quais são as liberdades femininas - além da sexual, a única trabalhada?
Acontece que, enquanto tem ótimos temas a serem trabalhados, parece que Morrison não foi tão assertiva, ao escolher erros editoriais sacros, que diminuíram o livro como um todo. Veja bem, a escrita da autora é ótima, fluida, que atiça o leitor, mas suas decisões, desde a escolha do título do livro, até mesmo como optou por começar e terminar esta história, parece apenas ter enfraquecido o próprio trabalho.
Digo isso porque, embora seja apresentado como um relato cru e sincero sobre a amizade de duas mulheres e sobre a pressão da sociedade sobre os desejos femininos, "Sula" seria melhor compreendido sobre a força feminina ao longo das décadas em uma sociedade sempre tão machista, pois a história é mais sobre Eva e Hannah, talvez até mesmo mais sobre Nel, que a própria Sula. E por que diabos começar o livro com um personagem masculino? O que Shadrack tem a oferecer ao leitor?
Outro ponto é a maneira como a autora pincelou Sula, como se forçasse o leitor a crer, a qualquer custo, que a mulher, desde criança, é má, fria, individualista, egoísta. Pouco acompanhamos da própria personagem para ver seu desenvolvimento, mas as informações são jogadas como que goela abaixo, algo como a autora querendo dizer: "Sula fez, isso, olhe como ela é má", ou "Sula aparentou frieza neste momento, o que mostra sua maldade", quando um capítulo inteiro foi construído de maneira magnífica, é preciso admitir, sem a necessidade ou interferência de Sula, mas que, em um último parágrafo, Toni Morrison quer enfiá-la apenas para reforçar seu comportamento deplorável.
Bem escrito, mas com decisões catastróficas, "Sula" se perde em suas intenções. A dita protagonista é, de longe, a personagem mais desinteressante e menos trabalhada dentre as demais, belamente escritas pela autora. Que suas próximas protagonistas não sejam tão frustrantes quanto esta.
Este livro faz parte do projeto "Lendo Nobel".