Lya Lunas 26/08/2016
Bom, mas...
Uma lição para todo leitor/crítico/aluno de Letras: o romance policial é o melhor indicador do contexto de uma época e/ou local. Por que digo isso? Se você considerar que as tramas envolvem um crime aparentemente impossível de desvendar, com herois e anti-herois incomuns tomando o lugar que deveria pertencer às autoridades policiais – ou são policiais agindo por conta -, e que boa parte dos vilões tem ligações com políticos e pessoas influentes na sociedade, bem, você já tem um retrato vívido da “história dos subúrbios” – justamente os habitantes com os quais qualquer leitor consegue se identificar por serem os mais expostos às mudanças da sociedade. Você verá isso com James Ellroy e seus romances que se passam em Los Angeles, com Dennis Lehane e Boston, Stieg Larsson e a Suécia inteira, José Louzeiro e o Brasil inteiro, Agatha Christie em qualquer lugar em que esteja a alta sociedade, etc. Mas por que digo isso agora? Por que é disso que trata “1974”, do autor inglês David Peace.
O romance se passa em Yorkshire, no norte da Inglaterra, onde o desaparecimento e o assassinato de uma pré-adolescente, Clare Kemplay, deixa a população e as autoridades locais em estado de tensão. Considerando que a região não é de escala urbana como as grandes metrópoles, um crime desses acaba causando um impacto muito forte sobre a comunidade, uma vez que o assassino pode ser muito bem conhecido por todos. É nesse momento que entra Edward Dunford, repórter do jornal local.
Notando que as autoridades policias estão perdidas em relação ao caso e que mesmo os jornalistas não conseguem avançar com a história, Dunford, recém promovido, vê nesse caso uma chance de crescer ainda mais dentro do jornal, podendo desbancar até Jack Whitehead, o principal repórter policial da região, conhecido por ser próximo das autoridades. Para atingir seu objetivo, Edward resolve ir a fundo no caso, consultando a “ralé” da sociedade, sendo direto com as testemunhas e policiais envolvidos no caso, e mesmo tendo um relacionamento com a mãe de uma outra criança desaparecida… E é aí que a coisa começa a complicar.
Enquanto todos estão perdidos no que concerne ao caso da morte da menina Kemplay, Dunford descobre outros casos parecidos em locais próximos – indícios de quem um serial killer estaria agindo na região. Em momentos assim, nossa lógica diria: “por que não mostrar isso para as autoridades?” O problema é que a lógica de Dunford é parecida com a nossa, e é aí que o romance toma uma direção que nos deixa zonzos.
Contado em primeira pessoa, “1974” é um romance que procura reproduzir a percepção de um jornalista investigativo dentro de um caso considerado “simples”, mas que toma vulto conforme o repórter vai mergulhando nele. Em certos momentos, Dunford perde a noção de realidade e não consegue diferenciar os fatos das hipóteses. Para ele, isso é muito ruim porque ele acaba de mexer num vespeiro. Todos à sua volta tem interesses escusos, e ninguém parece querer mexer um dedo para descobrir o que realmente aconteceu com as demais meninas desaparecidas.
Quando disse acima no primeiro parágrafo que o romance policial é “o melhor indicador de contexto”, é porque, infelizmente, somos expostos à corrupção das autoridades policiais e governamentais não só da região, como de todo o país. Para um repórter novato, ambicioso e em ascensão, esse é o pior tipo de coisa que poderia acontecer. Peace faz com que percebamos isso por meio dos devaneios da protagonista, que de tão exposto ao caso por decisão própria fica perdido em alucinações. No trecho acima, temos um exemplo de escrita telegráfica que lembra Hemingway ou mesmo Ellroy, um indicativo de que há muito mais acontecendo do que vemos na superfície do romance.
Através do olhar cínico de Dunford, um cara impossível de despertar simpatia em alguém, somos expostos à verdadeira história daquele período, onde vemos o descaso para com as classes baixas, a queda vagarosa do Partido Trabalhista, a xenofobia em ação e a escalada de um capitalismo mais violento. Trata-se de uma trama documental, em que praticamente não há herois nem a Justiça pode ser feita. “Sendo” Dunford, estamos de mãos atadas e nada podemos fazer.
Essa mistura de texto telegráfico, trama documental e narrativa em primeira pessoa pode causar confusão para alguns leitores que não estejam tão acostumados com o estilo. Para quem leu Chandler e Ellroy, o romance é uma ótima pedida. Este alerta serve para explicar a questão por trás de “1974”: não se trata de um romance fácil nem de um policial convencional. Se você perde um detalhe, perde tudo. E o pior: há momentos em que podemos ficar perdidos pelo fluxo de consciência do narrador – uma decisão proposital do autor, visto que ele procura ser o mais mimético possível ao reproduzir as ideias de alguém envolvido numa cena de crime.
O ponto fraco, infelizmente, deve-se à tradução publicada pela Benvirá, pois há momentos em que percebemos que algo passou batido em termos de contextualização – aqueles que já tem um maior conhecimento de língua inglesa perceberão isso. O texto original contém trocadilhos no meio do texto, que infelizmente o tradutor/revisor não notou. Pra quem não acha nada de mais nisso, pode ler sem problemas.