r.morel 05/04/2017
Gastando sola de sapato pelo Rio
Produtivos passeios os do flâneur João do Rio - um dos trinta e três pseudônimos de Paulo Barreto - pelas ruas do Rio de Janeiro, capital da República. Observador, nada escapa do seu olhar curioso. Observador, relata com poesia e graça os lugares e as pessoas, a vida e as vidas do povo.
Caminhou entre os chineses viciados em ópio (o crack dos pobres do período); pelos presídios (conversando com detentos e detentas); sentiu a dureza do trabalho dos estivadores do porto; correu dos “urubus” (os agenciadores das funerárias); correu e fugiu, mas, foram eles que não escaparam de João do Rio.
“A alma encantadora das ruas” (primeira publicação em 1910) reúne ensaios/conferências no prólogo (“A Rua”) e no epílogo (“A Musa das Ruas”) e uma mistura de crônicas e reportagens, registros do visto e escutado sem a chatice objetiva, isenta, imparcial, insossa e usual que lemos nos jornais do globo ou pelas folhas de São Paulo.
Antes da turma da revista The New Yorker; antes de Truman Capote e Tom Wolfe; antes do almofadinha Gay Talese (os capítulos sobre a cidade de Nova Iorque no livro “Fama e Anonimato” são irmãos camaradas dos textos de João do Rio, porém, mundialmente invejados como diamantes de 75 quilates jamais lidos); antes do aclamado New Journalism e bem antes do Gonzo Jornalismo louco de Hunter S. Thompson, o dândi João do Rio gastava incontáveis solas dos seus sapatos ingleses atrás de acontecimentos e eventos únicos.
João do Rio sabia contar histórias. Não foi o pioneiro, como a introdução (de Raúl Antelo) explica ao citar alguns franceses que faziam algo semelhante ao conhecer os tipos de Paris em seus boulevards. Não é cópia, contudo. Mentes criadoras funcionam de maneiras inesperadas. Os franceses tiveram a chance deles e aproveitaram. João do Rio, sem patriotismo exacerbado (Brasil!), posiciona-se no topo. Seu olhar era capaz de encontrar os detalhes sutis da vida e do comportamento.
O vocabulário requintado e barroco do ensaio “A Rua”, que custa a engrenar, cede o palco para a viagem de prazer das 25 crônicas divididas em 3 blocos: “O que se vê nas ruas”; “Três aspectos da miséria” e “Onde às vezes termina a rua”. São textos curtos, pois, originalmente eram direcionados para o público dos jornais. Certas crônicas, que possuem um amor e carinho maior do autor, são fortes e excelentes visões da rotina, e, hoje, tornaram-se preciosos documentos históricos.
É curioso notar como, passados 100 anos, as pessoas e as suas vontades permanecem parecidas. Em “As mariposas de luxo”, o melhor texto do livro, o narrador acompanha um grupo de moças com seus 20 anos que retornam do trabalho. Moças pobres maravilhadas com os produtos das vitrines; as joias e as roupas e as flores… A crônica data de 23 de março de 1907. É espantoso! Como essa vida de antigamente, que dizem ter cheiro de mofo, é igual a excitante vida contemporânea excluindo um reles detalhe aqui, ali, alhures (impressionante e inspirador).
A crônica “Os cordões” merece um destaque: João do Rio infiltra-se, cauteloso, nos cordões de lança-perfume dos antigos carnavais (logo ele, um flâneur que aprecia multidões desde que o ajuntamento de pessoas sobre pessoas não esteja sobre ele; imaginem o João do Rio na Banda de Ipanema ou no Cordão do Bola Preta: infartaria fácil, fácil). Lá, como cá, as multidões eram arrastadas pelos batuques e marchinhas, curtição total, carnaval é carnaval, sempre foi e a ideia é a loucura desenfreada em busca de bebida, em busca de mulher, em busca de homem, em busca de entorpecentes, em busca de prazer - brincar o carnaval: quem escuta pensa em crianças fantasiadas e confetes pelo chão… mas sabemos que não funciona idealmente como em um mundo mágico de Pierrôs, Colombinas e Arlequins.
Existem numerosos livros sobre cidades e as pessoas e as suas vidas. O Rio de Janeiro de João do Rio, que é o nosso Rio, é dos mais desejados, vistos, anotados e comentados por curiosos gringos estrangeiros e descobridores nacionais bisbilhoteiros. Estão certos e com a razão. É uma boa cidade e caminhar por suas ruas sempre traz algo interessante.
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