Senhora D. 29/09/2009Histórias são luz ante os olhos do leitor “A história de Despereaux”, de Kate DiCamillo, é a história de um jovem camundongo, bem diferente dos padrões de sua espécie, que não se identifica com a rotina dos camundongos e prefere ler romances de cavalaria na biblioteca real do castelo onde vive. Um dia, Despereaux visita os aposentos da princesa (humana) Ervilha, que estava ao lado de seu pai - o rei - ouvindo-o tocar uma música ao som do violão. A partir de então, Despereaux apaixona-se por música e pela princesa, e enfrenta todos os desafios para protegê-la. Mas como castigo pela ousadia de ter contato com humanos, o conselho dos camundongos decide mandá-lo para o mundo dos ratos – o calabouço. Esta, também é a história de um rato chamado Roscuro, que vive na escuridão do calabouço, mas que deseja um mundo cheio de luz e quando sobe ao castelo em busca de luz, cai acidentalmente no prato de sopa da rainha, esta tem um ataque do coração e morre, levando o rei a proibir sopas e a banir os ratos e camundongos do reino. E é a história de uma criada chamada Migalha Sementeira, uma triste menina com orelhas em forma de couve-flor que deseja muito ser princesa algum dia e que sonha ocupar o lugar de Ervilha e, para tanto, contará com a ajuda de Roscuro.
Esses personagens embarcam numa viagem que os leva a um horrível calabouço e a um castelo e, finalmente, para dentro da vida uns dos outros.
É uma história que pode ser considerada como um moderno conto de fadas, tecida num labirinto de muitas outras histórias de aventura, coragem, amor, vingança, perdão e de esperança na vida dos personagens que se encontrarão nos espaços iluminados do castelo e nas profundezas sombrias do calabouço.
O mergulho dos personagens entre a luz e a escuridão nos mostra o percurso interno de aprendizagem de cada um deles. O castelo, o ambiente principal da história, é dividido entre as luzes dos grandiosos salões, a penumbra da cozinha e a escuridão do calabouço.
O livro traz belas ilustrações em preto-e-branco de Timothy Basil Ering, onde evoca os principais encontros entre os personagens da história. Percebe-se claramente que seus traços são empregados delicadamente com o grafite. Suas imagens intercalam-se ao texto e são margeadas pelo branco da página em que, abaixo, inscreve-se uma legenda.
O livro é dividido em quatro capítulos que acompanham a história de cada um dos personagens principais: Despereaux, Roscuro, Migalha Sementeira e a Princesa Ervilha.
A autora faz questão de deixar claro que está contando uma história. Fala ao leitor o tempo todo, discute idéias com ele, esclarece desde o significado de palavras que são supostamente mais difíceis até o significado das consequências de decisões éticas. Sabe que é um leitor que precisa ser instruído, mas que é capaz de aprender. Tal estratégia muito facilita a compreensão de idéias.
A autora conseguiu construir uma história com muita pureza e uma profundidade singela e delicada. Além da delicadeza do estilo, DiCamillo conseguiu revelar com muita clareza as ambivalências dos sentimentos, os “mapas dos corações” de cada personagem. Dessa forma, as ações do vilão (Roscuro) podem ser perdoadas, ou ao menos, compreendidas, pois a autora mostra que sua motivação é inocente, ainda que suas ações sejam condenáveis. Esta história fala do respeito às diferenças e procura não estigmatizar heróis e vilões, nos mostrando que esses papéis não são definitivos.
A história de Despereaux é trabalhada entre dois níveis. No primeiro, a ação do camundongo (herói), como modelo positivo, ele reúne além das orelhas enormes, as qualidades (franqueza, bondade, um coração sem tamanho e coragem maior do que sua altura) que contrasta com a ação de seus antagonistas, Roscuro (um rato que sendo incapaz de alcançar a luz do mundo luminoso acima do calabouço onde vive, tenta escurecer a vida das outras criaturas) e Mig (a criada que deseja, a qualquer preço, ser princesa). Esses dois personagens são modelos negativos para as crianças, aquilo que, espera-se, elas não devem se tornar, mas isso não impede DiCamillo de tratá-los com compaixão e apresentar-lhes as motivações e traumas que os impulsionaram a praticarem o mal. No outro nível está a bem-humorada narração de Kate DiCamillo.
É interessante observar a simetria que ocorre entre Despereaux e Roscuro, pois tanto a descida do camundongo ao calabouço, quanto a ascensão do rato aos salões iluminados do castelo acabam por aproximá-los e os antagonismos entre eles são desfeitos.
Esse não é um final óbvio em um livro infanto-juvenil, até mesmo porque não se trata de um livro óbvio. O final não é do tipo “para sempre”, mas sim uma situação de retorno a um equilíbrio que não é garantido.
A história de Despereaux é daquelas obras que estão repletas de mensagens importantes sobre a necessidade de nos assumirmos como somos, e também vemos desenhar-se alguns temas bem adultos, como por exemplo, o abandono dos pais e a capacidade de perdoar.
Vale ressaltar que Despereaux se salva da morte no calabouço por ter uma história para contar. E como lhe diz Gregório, o carcereiro do calabouço: “Histórias são luz. A luz é preciosa num mundo tão escuro. Comece do começo, conte uma história para Gregório. Faça alguma luz.” E agora eu pergunto: por que será que gostamos tanto de histórias?