Steph.Mostav 15/08/2020Fausto sem pactoAqui temos a adaptação de Fernando Pessoa da lenda de Fausto, bastante inspirada na versão de Goethe. Ainda assim, Pessoa se utiliza do tema fáustico de maneira bem original, reelaborando os seus sentidos, sua estrutura e seus “acontecimentos”. Ao contrário do drama de ação de Goethe, o de Pessoa é teatro estático. Não existe o pacto e, com isso, não há uma tensão crescente até a condenação. Fausto aqui, como em Goethe, quer ultrapassar os limites de sua compreensão, de seus sentidos e sentimentos, mas ele o faz através do pensamento e não de um acordo demoníaco. Fausto aqui não sabe como agir, como amar e como mudar a si mesmo para deixar esse estado de desesperança e ceticismo. Desesperança e ceticismo, aliás, que também diferenciam esta versão da de Goethe, pois enquanto no drama alemão o protagonista representa uma busca constante pelo progresso, no drama português ele se expressa através da crise e da decadência. Pessoa se apropriou desse símbolo de busca do conhecimento inacessível para explorar “a luta entre a Inteligência e a Vida em que a inteligência é sempre vencida”. Para isso, o conflito seria desenrolado em 5 atos: conflito da inteligência consigo própria, com outras inteligências, com o amor, com a ação e a fatal derrota da inteligência. Infelizmente, o drama não foi concluído, ainda que para muitos, como o poeta Manuel Gusmão e Carlos Pitella, isso não seja sinal de que é um texto inacabado, mas sim inacabável. “Teatro em ruínas”, como uma analogia para a decadência em sua própria estrutura, ou ainda “um labirinto, uma espiral, um diário de busca – da busca do conhecimento, da verdade”. Esse é o tipo de livro que tem muito mais a dizer por si mesmo do que qualquer um possa escrever a respeito e a minha identificação com muitos dos trechos foi tão intensa que chegou a ser dolorosa.
“Abramos a janela... Tarde, tarde... É tarde... E outrora amava a tarde Com seu silêncio suave e incompleto Sentido além Da base consciente do meu ser... Hoje... não mais, não mais, me voltarão As inocências e ignorâncias suaves Que me tornavam a alma transparente. Nunca mais, nunca mais eu te verei Como te vi, do sol da tarde, nunca, Nem tu, monte solene de verdura, Nem as cores do poente desmaiado Num respirar silente... E eu não poder Chorar a vossa perda (que eu perdi-vos) [Nem mesmo] as lágrimas poder achar — Por amargas que fossem — com que outrora Eu me lembrava que vos deixaria. Oh, minha alma amarga Cheia de fel, e eu não poder chorar! Quem sente chora, mas quem pensa não. Eu, cujo amargor e desventura Vem de pensar, onde buscarei lágrimas Se elas para o pensar não foram dadas? Já nem sequer poder dizer-vos: Vinde, Lágrimas, vinde! Nem sequer pensar Que a chorar-vos ainda chegarei!”