Vitória 22/09/2023
Desde que inventei essa história de ler as obras do Jorge Amado por ordem de publicação que eu esqueci o querido no canto. A última vez que tinha pego um livro dele foi em 2021, quando li O Cavaleiro da Esperança. A sequência de biografias escritas por ele me desanimou um pouco, porque acho que elas estão longe de serem as melhores obra do Jorge. Esse também não chegou nem perto de se tornar um dos meus favoritos, mas vou explicar isso mais pra frente.
Depois de iniciar a leitura eu lembrei que já tinha lido as primeiras páginas de Terras do Sem Fim em algum momento no passado e que, por não ter conseguido mergulhar na história, eu tinha abandonado. Dessa vez eu não abandonei, mas a impressão continuou a mesma. Os trechos no barco são exaustivos demais. A gente conhece trocentos personagens de uma forma bem rasa, e não consegue se apegar a nenhum deles porque a gente simplesmente não sabe onde aquilo tudo vai dar, nem se eles terão importância na narrativa mais pra frente. Mas aí vai um spoiler: eles tem. Depois de ter percebido que essa foi a forma encontrada pelo autor de inserir quase todos os personagens da zona cacaueira, coisa que se tivesse sido feita de outra maneira talvez parecesse artificial, eu achei genial, mas não deixou de ser cansativo.
Tirando Seara Vermelha e Capitães da Areia, todos os meus livros favoritos do Jorge são aqueles nos quais ele acompanha um personagem só e que, ainda que outras tramas sejam apresentadas, no fim das contas é aquele personagem que importa. Aqui, infelizmente, a história não é assim, mas nem por isso deixa de ser maravilhoso. É quase como se estivéssemos acompanhando uma novela, inclusive era muito fácil pra mim imaginar os cenários na minha cabeça. A cada capítulo um novo personagem é apresentado (ou reapresentado, caso seja um dos que estavam no barco), nós conhecemos um pouco do passado dele e a partir dali a narrativa caminha tendo ele como um dos atores. Isso faz com que a leitura flua mais facilmente, afinal sempre vai ter algo acontecendo em algum dos núcleos. Porém, mesmo que o Jorge seja capaz de me fazer ficar apegada com um personagem novo em poucas páginas, eu sempre tinha o meu favorito, e sempre queria saber mais sobre ele.
Dos meus favoritos, Damião com certeza é o maior. Eu me acabei de chorar nos capítulos dele. Achei linda a forma como o Jorge construiu a epifania dele, de como ele faz o cara que é basicamente um assassino de aluguel, que quando não está fazendo tocaia esperando sua próxima vítima, está no terreiro brincando com as crianças, finalmente perceber o que ele faz pra ganhar dinheiro. A humanização desse personagem é muito verdadeira. E os trechos seguintes, sobre o feiticeiro Jeremias, trazem uma visão que eu acho necessária, mas que eu não esperava ver nessa obra devido à época em que ela foi escrita. Nesse ponto já é certo que a mata vai ser derrubada pra se tornar uma plantação de cacau, a gente só não sabe ainda quem vai conseguir fazer isso primeiro, e ver o Jeremias, no momento em que sabe desses fatos, falando que o sangue dos homens e dos animais da mata vão servir de adubo pros cacaueiros e morrendo logo em seguida me arrepiou inteira. O Jorge realmente pensava em tudo.
Temos algumas histórias de amor, mas como em qualquer livro do Jorge elas são mais trágicas que qualquer outra coisa. Acho que o que eu mais gosto dessa obra é justamente o que ele não consegue fazer nos livros com apenas um protagonista: ele debate muitos temas sociais. Num primeiro momento eu pensei que ficaríamos apenas na fazenda, com os latifundiários que são donos de tudo, inclusive das pessoas, dos trabalhadores que lutam de sol a sol pra tentar sobreviver e quem sabe diminuir a dívida deles com a fazenda, da violência que aparece todo dia assim que o sol se põe e da lei do mais forte que dita verdadeiramente com quem aquelas terras irão ficar. Porém, em certo momento, a narrativa se desloca um pouco pra cidade mais próxima, e aí os temas se abrangem ainda mais, falando sobre como os fazendeiros e o dinheiro que eles possuem controlam a política e a justiça do lugar, e de um dos meus temas favoritos abordados pelo Jorge: as prostitutas. Eu não tenho nem espaço pra falar sobre isso tudo aqui, mas fiquei assustada com o quão atual um livro escrito há 80 anos pode ser. Como uma pessoa nascida no interior e militante do movimento de luta pela terra desde que se entende por gente, eu sei que essas mortes por conflitos de terra e a escravidão do campo existem ainda hoje porque eu vi elas acontecerem. Eu sempre falo que gosto mais das obras do Jorge que se passam na cidade, mas as do campo batem em um lugar diferente dentro de mim. Tirei meia estrela só por essa minha neura de querer apenas um protagonista, mas que no fim das contas não faz o livro perder a qualidade. Espero voltar em breve pra falar sobre São Jorge dos Ilhéus, chega de passar dois anos sem ler nada desse homem.