Mayana26 11/10/2022
Palácio das ilusões
Mansfield Park (1814), terceiro romance publicado da autora britânica Jane Austen, foi o quinto livro dela que li, conhecendo a protagonista mais tímida dos 6 trabalhos da minha escritora favorita. E lendo logo após Morro dos Ventos Uivantes, não pude deixar de relacionar os enredos.
Fanny Price é a segunda filha de 10 crianças de um casal muito pobre que vive na cidade portuária de Portsmouth. Já suas tias maternas vivem no campo, na mansão de Mansfield Park.
A Mrs Norris, recém-viúva do reverendo, em um ataque de caridade e julgando por meio disto se reconciliar com a irmã distante, resolve que sua outra irmã, Lady Bertram, e seu cunhado, Sir Thomas, devem cuidar da sobrinha, a fim de lhe oferecer a oportunidade de uma educação melhor.
Mas aos 10 anos de idade, Fanny não pôde retribuir a nobre atitude dos parentes com gratidão, pois se via separada da família e num lugar hostil onde primos e tios, ao mesmo tempo em que lhe davam condições promissoras de vida, pareciam fazer questão de a inferiorizar, isto vindo principalmente da parte da Mrs Norris e de suas duas primas, Maria e Julia. Seu pródigo primo Tom é indiferente. Seu tio, Sir Thomas, é rígido e intimidador. Sua tia, Lady Bertram, bem, ela gosta muito de seu Pug e de tirar sonecas. A única face gentil que encontra é do primo Edmund, que logo se responsabiliza por seu bem-estar e educação, e se torna seu melhor amigo. Ela também se corresponde com seu irmão mais velho, William Price, sendo seu único vínculo ao passado.
Esta primeira fase do romance me lembrou bastante a forma com que Pollyanna (do infantojuvenil homônimo de Eleanor H. Porter, de 1915) foi tratada pela tia Polly, alocando-a no sótão, muito parecido com o quartinho dado a Fanny, em que a austera Mrs Norris proíbe de acender a lareira.
Fanny cresce com doçura, por um tempo com saúde fraca, mas logo se recuperando e seguindo a servir à família que a acolheu, sempre bem consciente de sua posição. Se o comportamento dela é menos extrovertido que de outras protagonistas de Austen, como Elizabeth Bennet e Emma Woodhouse, não é menos perspicaz. Na verdade, até avalia rigorosamente seus novos vizinhos que vieram da frenética Londres, os irmãos Henry e Mary Crawford.
A opinião política da Fanny em relação ao tráfico negreiro, apesar de pouco aprofundada, também é o que diria constuir como a primeira vez que Jane aborda o tema em seus livros. Aqui é importante dizer que toda a obra da escritora é ricamente permeada de críticas à sociedade britânica, tocando assuntos como direitos das mulheres, materialismo e moralidade com um humor primoroso.
Segue-se com as confusões dos arranjos de relacionamentos que podem dar certo ou não, ironia das situações, contradições e (in)constância dos personagens, crítica à cirscuntância feminina do período, numa tônica crítica sobre a moral, a educação/criação e religiosidade.
Mary Crawford é apresentada como uma antagonista, mas é difícil nutrir antipatia pela espirituosidade, opiniões fortes e charme. Sem peso na consciência, posso dizer que ela é uma das melhores personagens do livro, cuja relutância em escolher casar por amor com um clérigo que não poderia lhe dar condições luxuosas de vida me pareceu muito bem justificada, considerando o morgadio que subjugava jovens mulheres durante a regência.
Ao mesmo tempo, a relutância de Fanny em casar com um típico "bom partido", mas a quem não ama, se opõe diametralmente à posição de Mary, também se justificando e sendo digna de louvor. Pode ser lida no trecho "? Eu pensaria [...] que toda mulher deve sentir a possibilidade de um homem não ser aprovado, não ser amado por alguém do sexo feminino, ainda que ele seja agradável. Mesmo que ele tenha todas as perfeições do mundo, creio que não se deve dar como certo que esse homem necessariamente seja aceito por qualquer mulher de quem ele venha a gostar", apesar disto ser visto como razão para castigo na história.
Aqui também, uma figura religiosa é positivamente tratada, variando dos inconvenientes e caricatos Mr. Collins (Orgulho e Preconceito) e Mr. Elton (Emma).
Outro aspecto que gostei neste romance foi de que oposições e comparações permitem demostrar como o caráter da pessoa pode resistir ao ambiente em que cresce. Quando Fanny volta a Portsmouth, não deixa de reparar na dissonância entre a riqueza de Mansfield Park com a miséria em que sua família vive, nota a agitação insalubre da cidade, ao contrário da paz proporcionada pelo campo, o desrespeito entre os familiares, hábitos ruins e a falta de ordem de seu primeiro lar.
Isso certamente afetou seus pais e culminou na frieza com que a trataram quando ela os visitou depois de tanto tempo, mas não impediu que seu irmão William fosse amoroso e crescesse como oficial da Marinha, nem que sua irmã Susan fosse dedicada à casa e à família e que tivesse um bom coração. Ao contrário de suas primas, que sendo criadas em meio a privilégios, recebendo a melhor educação, convivendo em um ambiente favorável, com a Mrs Norris as elogiando, e pais as amando, acabaram tomando decisões ruins e se envolvendo em escândalos. A história traça justamente esses paralelos, permitindo ao leitor notar que a vida pode ser definida pela força do caráter de resistir ao mal.
O desfecho é bem ao estilo Jane Austen, recheado de cartas reveladoras e fofocas, declarações apaixonadas e finais felizes para os mocinhos, e deixa, pela primeiríssima vez, abertura para o leitor imaginar a ordem das coisas. A respeito do casal, diferença de idade e outras coisinhas (sem spoiler aqui) posso dizer que são bem compreensíveis dado o contexto histórico, mas se eu pudesse mudar um pouco mudaria sim, haha. Leitura gostosa, com trama digna de novela, cheia de dramas familiares, e protagonizada por uma heroína como nunca vi. Recomendo sempre!