mpettrus 16/12/2022
?Perfídia Senhorial?
??A Escrava Isaura? é uma obra de ficção popular e sentimentalista, publicada em 1883, que ganhou vida pelas mãos de Bernardo Guimarães, estudante da Academia de Direito de São Paulo, romancista e poeta do Romantismo brasileiro, cuja origem mineira é marcada com veemência em sua obra.
? Esse romance é uma obra freqüentemente rotulada como abolicionista, a despeito do teor de sua trama não propor uma extinção nacional ? e datada ? para o fim da escravidão. Ao contrário, no romance é defendida uma solução senhorial ? através da concessão de alforrias ? para se extinguir o regime servil. Eis aqui minha principal crítica a essa obra: o exagero em afirmar que houve certa coragem ao criticar a escravidão em pleno 1875.
Considero sim que essa obra tem um caráter político caracterizado como abolicionista, entretanto, afirmar que esse romance trouxe grande contribuição para a extinção do regime servil é desproporcional ao que ele realmente de fato contribuiu para o fim do sistema escravista.
?A obra também passa uma ideia de que a luta pela abolição do sistema escravista foi tarefa de indivíduos ?brancos?, ?cultos? e liberais ? representado na figura do personagem Álvaro - em detrimento dos escravizados que de diversas maneiras manifestaram seus descontentamento com a escravidão.
Outro ponto muito interessante que notei é sobre a composição das personagens femininas: Rosa, a escrava, portanto, negra, é a maldade em forma de gente, enquanto as personagens femininas ?brancas? são todas moldadas no amor e na caridade.
?E essa caracterização tem seu maior modelo na própria protagonista, que é um exemplo de pureza, ainda que escrava, porém, branca. Ela é talvez o nosso maior exemplo de uma ?alpinista racial? e, neste sentido, personifica a questão da mestiçagem no Brasil, um tema ainda não resolvido no nosso imaginário. O escarvo branco, que oficialmente não existia, era uma realidade que o governo e os escravocratas tentavam esconder, justamente porque no sistema escravista do Brasil o cativeiro se legalizava pela discriminação racial.
?O narrador bernardino nos mostra senhores terríveis representado nas personagens Leôncio e o comendador Almeida, este, estuprou Juliana, a mãe de Isaura. Aquele é a figura máxima de uma personagem senhorial que foi criada para ser obedecida em todos os seus desejos. Elemento que se acentua em seu obstinado e irracional desejo de possuir a escrava branca, ou seja, a representação de um senhor demasiadamente apegado à escravidão e extremamente irracional. No decorrer da narrativa podemos perceber que a perfídia senhorial ia para além de torturas físicas contra os escravizados, havia algo tão pior quanto: a tortura psicológica.
? Tortura psicológica, por exemplo, mostrado na perspectiva do olhar de Sinhá Malvina, que duvidou da ?pureza? da escrava branca, acatando a decisão de seu marido, de casá-la com o Srº Belchior, o Corcunda da história. Também saliento a tortura psicológica da própria protagonista quando fugiu com seu pai, o Capitão Miguel, mas vivia atormentada com medo de ser capturada pelo ?seu Senhor?.
?Sei que o autor fui uma voz ativa na defesa da dignidade dos escravizados, uma luz na escuridão apregoando discursos contra o sistema escravista brasileiro. Reconheço esses méritos. Mas também entendo que ele produziu um discurso favorável à perspectiva senhorial, um discurso essencialmente conservador, quase a nos dizer que ?senhor? e ?escravo? são vítimas, sendo aquele quem mais sensivelmente sofreu as consequências desse sistema injusto. E para corroborar mais enfaticamente essa minha afirmação, Guimarães popularizou uma protagonista romântica, porém, essencialmente branca. E não uma mulher negra, que efetivamente, sofreu com escravidão.
? Enfim, neste romance temos uma conhecida fórmula romântica cujos enredos envolvem um herói e uma heroína, brancos, cultos e ?civilizados? (protagonistas), pelos quais os leitores deveriam se comover e se identificar, e de outro lado um vilão (um ser repulsivo que deveria ser detestado, que sofre uma ruína moral e econômica), que antagoniza uma história de amor marcada por um obstáculo ? a escravidão ? que adia para os últimos momentos a união entre os enamorados. Tem seu valor, mas tenho a impressão de que essa obra envelheceu mal ficando excessivamente datada.