Otávio Augusto 04/03/2024Curto, mas valiosoAnna Kariênina e Guerra e paz estão em quaisquer listas de clássicos da literatura universal. Inicialmente, esses grandes romances assustam os que temem demorar mais de uma semana em uma leitura, mas, depois de iniciados, dificilmente o leitor consegue largá-los: a narrativa tolstoiana é acessível e fascinante. Por outro lado, pouco destaque é dado aos textos curtos de Tolstói – suas novelas e contos -, que também são obras de grande relevância, seja pelo valor literário, seja pelo valor autobiográfico. Nesse contexto, Padre Sérgio se mostra uma obra de leitura fundamental para entendermos as crenças de Tolstói e, por consequência, sua obra.
Por volta de 1880, Liev Tolstói passou por uma uma forte crise espiritual que o tornou um moralista avesso ao Estado e à Igreja Ortodoxa, além de crítico ferrenho a quaisquer prazeres e riquezas mundanos. Uma linha de pensamento que se opõe diametralmente à sua posição social de aristocrata. Sob essa perspectiva, a novela Padre Sérgio, uma produção literária de 1898, narra a história Stiepán Kassátski, um homem que, a um mês de se casar, largou a noiva e a brilhante carreira militar, para tornar-se um monge. Essa breve sinopse é antecipada pelo narrador já no primeiro parágrafo e prenuncia o forte tom pregador da novela.
Cabe ressaltar que, antes de tomar essa decisão, Tolstói já nos deixa claro que Kassátski é um homem vaidoso. Suas ações eram motivadas pelo um desejo de ser bem visto pelos outros. A decisão pela vida monástica não foi diferente: ela não se deu por uma verdadeira busca pela divindade, mas por um desejo de alçar-se a uma posição social superior à dos sujeitos que lhe causam inveja. Seu casamento também era apenas um degrau em sua escada rumo à ascensão social. Entretanto, ele chega a se apaixonar pela noiva e a se realizar como monge. Essa contradição interna do protagonista, sempre dividido entre o mundo material e o espiritual, é a maior qualidade da obra.
Nessa caminhada, Padre Sérgio – denominação do protagonista após se tornar padre - também será alvo de outro pecado: a concupiscência. O contato com mulheres, damas da alta sociedade, começa a embaraçar sua mente. A solução encontrada é radical: virar um eremita. Mesmo assim, vivendo por sete anos isolado do convívio social, ele é tentado por uma mulher que deseja se aquecer em sua casa, durante um inverno. Para que seus pensamentos não fossem dominados pelo pecado, Padre Sérgio amputou um dedo com um machado, contendo seus ímpetos sexuais. A atitude radical traduz muito bem o crescimento do fundamentalismo religioso do protagonista, que também se traduz numa misoginia. Se antes Tolstói analisava em profundidade os conflitos e desejos internos de Anna Kariênina, suas oscilações entre família e adultério, amor carnal e amor espiritual, elementos que a tornaram uma das maiores personagens da literatura universal, em Padre Sérgio as mulheres são vistas de forma binária: Ou são meras obras do demônio, seres que incitam o homem a pecar contra a castidade, ou, são santas bondosas e tementes a Deus. O Tolstói pregador cresce, agiganta-se a ponto de se sobrepor ao romancista, o que prejudica a qualidade literária.
Após a amputação do dedo, a dama que tentou o protagonista virou uma noviça religiosa, o que conferiu ao padre a fama de milagreiro. A fama o tornou o centro das atenções de seu monastério, um ímã de visitantes dispostos a oferecerem dinheiro à Igreja a fim serem curados. Nesse ponto da narrativa, Tolstói deixa claro sua visão da Igreja Ortodoxa, a qual é vista como uma instituição venal, apegada a ritos e procedimentos opostos às palavras de Cristo, capazes de tornarem a fé um produto mercantilizado. Não é à toa que o momento de maior crítica à Igreja coincide com a decadência de Padre Sérgio, que tem sua espiritualidade ascética corrompida pelo orgulho mundano, ao tornar-se o centro das atenções.
Sua queda definitiva ocorre ao se envolver com uma mulher numa visita desta ao monastério, o que desencadeia uma crise no protagonista e o leva a abandonar a Igreja Ortodoxa, em uma virada narrativa bastante artificial: o personagem lembra-se repentinamente de Páchenka, uma prima de vida sofrida, e decide largar o seu ofício para vê-la, sem que haja qualquer apresentação anterior desta personagem ao longo da novela. Ao encontrá-la, percebe nessa mulher um modelo perfeito de santidade, uma pessoa capaz de se doar integralmente em prol da subsistência de sua família desestruturada. A visão do altruísmo de Páchenka o faz perceber que, vivendo para Deus, estava vivendo para os homens, ao passo que sua prima, ao viver para os homens, vive para Deus. Essa percepção faz Kassátski viver como um peregrino mendicante, ser preso por vadiagem e enviado à Sibéria, tornando-se um trabalhador camponês.
Tenho uma opinião ambígua quanto ao final de Padre Sérgio. O fato de ele relembrar uma personagem jamais citada até então na narrativa, somado ao fato desta personagem ser o ponto de inflexão na vida de Sérgio, é um recurso ex machina preguiçoso, que reforça a voz fundamentalista do autor. Ainda assim, vejo grande valor nesse personagem, que se mantém contraditório ao fim da narrativa, na medida em que sua vaidade continua presente, mas sob outra forma. Surge a vaidade de negar a própria vaidade, uma abnegação que tenta esconder a soberba interna, oriunda da sua autopercepção como alguém moralmente superior a todos os homens e instituições. Essas características tornam o personagem muito humano e palpável – não é raro ouvir histórias reais semelhantes. A pregação do autor pode se exceder em certos trechos da novela, mas o valor literário da obra persiste, bem como sua importância como manifestação da espiritualidade nada ortodoxa de Tolstói. Recomendo que leiam também a carta em que ele comenta a sua excomunhão da igreja, um texto muito elucidativo que expande a leitura e está na edição da Companhia das letras.