spoiler visualizarMarcorigobelli 18/05/2011
Um Estranho Numa Terra Estranha
"Era uma vez um marciano chamado Valentine Michael Smith."
Quando li isso, não grokkava ser a saudação para a maior experiência literária que tive desde que, sei lá, aprendi a ler. Cinco minutos depois, já tinha sido engolido pela história curiosa do Homem de Marte que chocou sua criação alienígena com sua origem humana e resultou no melhor livro que já li em minha vida.
Conhecia o livro de nome e por seu plot, mas não sei por que caralhos nunca tive contato com ele – e agora sei quão idiota fui. Graças às insistências do Pedrones (que fez questão de me dar o livro e pedir para lê-lo o quanto antes), me entreguei às 527 páginas que devorava numa velocidade e dedicação só tidas quando li Memórias do Subsolo, Dom Quixote, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, O Amor em Tempos de Cólera e Memórias Póstumas de Brás Cubas pela primeira vez. Isso até notar que faltavam algumas centenas de páginas para concluí-lo e não querer que aquela história acabasse; ter medo de me decepcionar com seu fim e destruir toda a experiência, por ter medo de dizer adeus a tantos personagens que me encantaram e ensinaram tanto sobre a sociedade, a moral e a ética humana e sobre eu mesmo.
“'Amor' é a condição na qual a felicidade de outra pessoa é essencial à sua própria."
Esse foi o ponto fundamental que tornou a obra tão apaixonante para mim, porque antes os livros tinham formado meu caráter, aprendido a entender as pessoas, o mundo em que vivo e a civilização à qual pertenço. Mas nunca nenhum deles tinha ensinado tanto sobre mim, sobre como encaro todas essas coisas; sobre como entendo o sexo, a religião, a sociedade, o amor, a ciência, o ser humano. Até antes de Um Estranho Numa Terra Estranha, nunca tinha me encontrado tanto em um calhamaço de papel preenchidos com letras, palavras, frases. Aprendi mais sobre mim lendo Um Estranho Numa Terra Estranha do que consegui aprender vivendo esses vinte e dois anos.
Sabem quando chegamos ao fim de um bom livro? A sensação de que estamos dando adeus a um grande amigo. Pois então, junto dela, parece que meus dias ficaram mais cinzas. Que preciso voltar a ler ele novamente o quanto antes, quando como uma paixão acaba.
"O sexo devia ser uma forma de felicidade. Ben, a pior coisa a respeito de sexo é que nós o usamos para nos ferir mutuamente. Ele nunca deveria ferir e sim trazer felicidade ou pelo menos prazer. O código diz: “Não cobiçarás a mulher do próximo.” Qual é o resultado? Castidade forçada, adultério, ciúme, amargura, pancada e às vezes assassinato, lares desfeitos e crianças problemáticas… e aventuras furtivas que degradam a mulher e o homem. Esse mandamento foi sempre obedecido? Se um homem jurar em cima da sua própria Bíblia que jamais cobiçou a mulher do próximo porque o mandamento o proíbe, vou achar que ele está se iludindo ou que é sexualmente anormal. Todo homem bastante viril para fazer um filho desejou várias mulheres, estivesse ou não com elas."
Um Estranho Numa Terra Estranha foi escrito por Robert A. Heinlein (dos livros que deram origem à cinessérie Tropas Estelares) em 1961 e continua atual até hoje. O livro tem uma visão diferente da que estamos acostumados na ficção científica, não trata de grandes conquistas ou feitos, mas dos pequenos detalhes e defeitos que constituem nossa sociedade e serão inerentes a ela não importa quão avançados científica e filosoficamente sejamos, porque fazem parte da natureza humana.
Esse é um livro crítico, ácido e, em alguns momentos, bem humorado que mostra visões, opiniões e valores sobre sexo, amor, religião, política e relações humanas em geral. Tudo sob a ótica de um homem criado por marcianos que chega, já nos seus vinte anos, à Terra e tem de entender tudo sobre nossa forma de pensar, viver e morrer sem ter nenhuma influência por nossos tabus ou valores morais. Como um recém-nascido já totalmente ciente de si, talvez até mais que nós.
"O ciúme é uma doença e o amor é saudável. A mente imatura confunde, muitas vezes, um com o outro, ou pensa que, quanto maior o amor, maior o ciúme. Na realidade, são incompatíveis. Uma dessas emoções não deixa lugar para a outra. As duas, ao mesmo tempo, criam uma boa confusão."
Cada vez que parava de ler, gastava mais alguns minutos quieto, digerindo aquilo tudo e vendo como nós somos mesquinhos, estúpidos, miseráveis. Valentine Michael Smith, Jubal, Jill e tantos outros personagens são cheios de vida, muitas vezes tão perdidos e pré-programados quanto qualquer um de nós e, graças a isso, ricos, repletos de defeitos e tão palpavelmente humanos que durante todo o percurso do livro eu acreditava serem reais e também estar lá, junto, observando os fatos e fazendo parte tanto dos valores tão brilhantemente colocados em cheque quanto do final sublime que o livro e seu protagonista tiveram.
Não os aconselho a ler este livro, os obrigo disso. Também os desafio a terminá-lo sem colocar em dúvida pelo menos um dos valores que vocês têm como certo. E peço à Editora Record que volte a publicá-lo, é um crime privar nossas livrarias deste “maravilhoso artefato humano para aqueles que podem pensar no lugar dos seres humanos não numa mesa de jantar, mas no universo”, segundo o mestre Kurt Vonnegut (autor de Revolução do Futuro e Matadouro 5).
"Todos os homens, deuses e planetas mencionados nesta história são imaginários. Qualquer coincidência de nomes é de se lamentar."