spoiler visualizarIsa Beneti 19/07/2021
O fantástico como forma de representar o sofrimento da guerra
Infelizmente, esse foi um livro ao qual não dediquei atenção suficiente, logo, considero que minha leitura foi pouco proveitosa, visto que essa obra exige bastante do leitor, não somente por causa da linguagem única utilizada por Mia Couto, mas também pelo modo complexo como o autor desenvolve o enredo, intercalando e interlaçando 2 focos narrativos: um em terceira (de Muidinga e Tuahir) e um em primeira pessoa (de Kindzu). Ambos os focos contam histórias de sobreviventes da interminável guerra civil de Moçambique e ambos ocorrem em tempos próximos e praticamente no mesmo cenário, o que aproxima muito as duas linhas narrativas, levando-as a convergir em muitos pontos, sobretudo no final.
A primeira linha conta a história do menino Muidinga e o velho Tuahir, quem o jovem insiste a chamar de "tio", mas na realidade não possuem relações de parentesco. Ao longo do romance, a relação entre essas duas personagens e o modo como eles se encontraram vão sendo esclarecidos ao leitor e a Muidinga, que, segundo o velho, teve sua memória prejudicada por uma doença causada pela ingestão de mandioca (resultado da fome extrema, o que me lembrou muito de "O Quinze") e, por isso, não se lembrava de nada sobre seu passado. Logo no começo do livro, o romance é ambientalizado em um local devastado pela guerra, marcado pela morte e também pela fantasia, principalmente depois que o menino encontra, num corpo baleado próximo de um ônibus queimado, o diário de Kindzu e passa a lê-lo em voz alta para Tuahir durante sua viagem.
A partir de então, os capítulos vão alternando entre a peregrinação do garoto/velho e a história fantástica de Kindzu, e, não por coincidência, a jornada da dupla de personagens torna-se cada vez mais mágica à medida que avançam na suas andanças (que em alguns momentos não parece estar sendo realizada em círculos, pois a paisagem não muda, e, em outros, a estrada parece se mexer sozinha durante a noite, como se a terra tivesse vida própria- uma terra sonâmbula). Em certo ponto, por exemplo, a dupla encontra o velho Siqueleto, que captura os dois com o intuito de enterrá-los na terra para que nasçam mais humanos e, assim, sua solidão em meio à guerra acabe. Após isso, o velho e o menino encontram outro homem que trabalha incessantemente para construir um rio em meio à terra seca e sem vida em que vivia. Ao final, esse homem morre e ele mesmo se torna o rio. Como é possível perceber, a narrativa é repleta de acontecimentos mágicos e de personagens que buscam meios fantásticos para se livrar dos sofrimentos da guerra, o que dá ao livro um forte tom de realismo fantástico.
Da mesma forma, a história de Kindzu, que vai sendo contada em capítulos alternados com a de Tuahir e de Muidinga, também é repleta de eventos irreais ligados às crendices da população Moçambicana. Um desses eventos mágicos mais marcantes ocorre ainda na infância de Kindzu, quando seu irmão Junhito (apelido para "Vinte e cinco de Junho", nome que lhe fora dado em homenagem ao dia da independência de Moçambique e que dá ao personagem uma carga simbólica muito grande) se transforma em um galo após seu pai, Taímo, fazê-lo a se passar pelo bicho para o proteger da guerra e da fome. Ao longo de toda sua jornada, Kindzu sempre esteve a procura do seu irmão, cuja memória se fez presente até a morte do protagonista. Além do irmão, o espírito do pai também acompanhou o filho em suas andanças, visto que ainda jovem Kindzu decide partir de sua cidade natal para se tornar um guerreitro naparama. Taímo, que já havia falecido, passa a persegui-lo em forma de espírito e de ave, amaldiçoando o destino do filho, que faz de tudo para evitar tais maldições, dando até mesmo o nome de seu barco em homenagem ao pai.
Um tempo após sua saída, Kindzu chega à cidade de Matimati, onde encontra pessoas já conhecidas, tal como o seu amigo indiano Surendra, que era comerciante muito sábio que tinha uma loja em sua cidade natal, mas também conhece muita gente, incluindo Farida, sua irmã gêmea Carolinda e sua mãe adotiva Dona Vingínia. Farida é encontrada em um barco encalhado próximo à cidade, e Kindzu imediatamente se apaixona por ela, que lhe conta sua sofrida história de abandono parental (sua irmã gêmea havia sido morta por sinalizar mau agouro, e depois Farida foi adotada pelo casal de portugueses Virgínia e Romão), de abusos sexuais (Farida era estuprada por seu pai adotivo) e de perda do filho (Gaspar). Kindzu, então, compromete-se a encontrar seu filho Gaspar durante sua jornada para se tornar um Naparama. Entretanto, o protagonista não consegue cumprir sua promessa, pois se vê obrigado a fugir de Matimati depois de ter se envolvido com Carolinda, mulher casada com um dos administradores da vila e que, como ficou sabendo posteriormente em uma visita à Virgínia, era gêmea de Farida. Kindzu decide fugir da cidade em um ônibus, mas acaba o encontrando queimado na estrada (olha como a narrativa é cíclica: voltamos agora onde estavam Muidinga e Tuahir no início do livro, onde encontraram o diário) e, nesse momento, sente um baque e morre baleado. Os seus últimos instantes são narrados por ele de maneira muito profunda e cheia de acontecimentos fantásticos que podem (ou não) ter sido mera imaginação do personagem: Kindzu vê, em seu lado, um galo que supõe ser seu irmão, e quando olha para si mesmo percebe estar vestido como um guerreiro naparama. Por último, instantes antes de falecer, o narrador avista um menino se aproximando e tomando seus cadernos (assim como fez Muidinga), e morre com a certeza de que esse garoto era Gaspar! Já no foco narrativo de Muidinga e de Tuahir, o romance termina com a morte de velho e com jovem encontrando um barco abandonado com o nome de "Taímo", o seja, o barco de Kindzu!
Certamente, esse é um final quase tão impactante e fantástico quanto o de "Cem Anos de Solidão" e, inclusive, muito semelhante a esse livro e vários aspectos, tal como a presença do fantástico e do sonho que se confunde com a realidade ao longo da narrativa. Por meio dessa mistura do real com o mágico, Mia Couto descreve situações que dificilmente seriam descritas tão intensamente com uma linguagem objetiva. Por isso, além do recurso fantástico, o autor também se utiliza de recursos linguísticos, de maneira semelhante ao que vários escritores (como Guimarães Rosa) já haviam feito, realizando de neologismos e construções sintáticas únicas, que aumentam ainda mais o valor e a profundidade dessa obra.