AndreTaff 25/04/2024"A República", ou porque não ler um clássicoNo início deste ano resolvi participar do desafio de leitura do canal Livrada, do Youtube. São várias "categorias" de livros a ler, e para completar o desafio é preciso atender a todas elas durante o ano. Por exemplo, li A Mão Esquerda da Escuridão para a categoria de "livro de ficção científica", e Zona de Interesse para a categoria "livro que virou filme".
Uma das categorias que estavam me deixando com dúvidas era a de "clássico grego", mas, sem pensar muito e sem fazer pesquisa, me decidi por A República, um dos diálogos de Sócrates escrito por Platão. É dentro deste livro que aparece o famoso mito da caverna, que resume muito bem o cerne da filosofia socrática-platônica. Não tinha como dar errado, não é mesmo? O máximo que poderia acontecer era alguma eventual torcida de nariz com os ideais platônicos do Bem, da Verdade, da Justiça - nessa briga, estou com Aristóteles, para quem as ideias surgiam a partir da observação do mundo real, e não o inverso.
Mas, assim que comecei a leitura, comecei a achar o Sócrates descrito por Platão uma pessoa um tanto irritante. Quando lia alguém falando do método socrático utilizado na filosofia, imaginava que Sócrates fazia perguntas sinceras e, a partir das respostas, seguia adiante utilizando o raciocínio da outra pessoa para então formular mais perguntas. Isso acontece em certa medida, mas a maior parte das perguntas do filósofo vem com uma resposta pronta dentro delas mesmas, guiando o raciocínio por um caminho já estabelecido anteriormente.
São frequentes construções em que Sócrates pergunta algo como, "Não é verdade que…?", acompanhadas de simples confirmações da outra parte. Ou, "Entre x e y, o que te parece mais verdadeiro?", sendo que uma das alternativas é obviamente a resposta esperada. Em muitas situações, é fácil imaginar uma terceira alternativa, que não é anunciada, criando uma situação de falsa dicotomia*. Longe de seu “só sei que nada sei”, o filósofo parece ter opiniões prontas e certezas sobre tudo.
No início do livro, Sócrates é confrontado por Trasímaco, um filósofo sofista. Mesmo sendo muito provável que Platão tenha descrito as ideias de Trasímaco com tons caricaturais, o fato de haver alguém que não simplesmente concorda com Sócrates em tudo o que ele diz dá uma leveza ao texto, o que faz muita falta na maior parte do livro. Mais do que um diálogo, A República soa como um grande monólogo, entremeado por confirmações como "É verdade", "Com certeza", "Não vejo como não pode ser assim". E se isso parece tedioso, é porque é mesmo.
É fácil pra mim, quase dois mil e quinhentos anos depois, criticar o estilo e as ideias de Platão com uma bagagem ética e filosófica que tem o platonismo como um de seus alicerces. E também é verdade que cada obra tem que ser observada em seu contexto histórico e cultural, e que Platão foi, sob muitos aspectos, progressista e até revolucionário. É impossível me colocar em seu lugar, um grego para quem o mundo era limitado a onde podia viajar a cavalo, desconsiderando os vinte e cinco séculos de história que nos separam. Mesmo assim, não consigo pensar sobre este livro sem mencionar algumas ideias absurdas aos meus olhos contidas no texto.
Em A República, Platão descreve a cidade-estado ideal de acordo com o pensamento de Sócrates, uma espécie de utopia rudimentar. Nessa república ideal, a arte deve ser minuciosamente controlada, e qualquer obra que não esteja alinhada com os ideais do Bem deve ser censurada. Os músicos e poetas que não estejam alinhados devem ser condenados ao desterro. Durante a leitura, o autor deixa claro considerar a arte uma atividade menor, quase desimportante, diante da importância crucial da filosofia e das atividades manuais, como a carpintaria. Platão parece ter uma implicância particularmente forte com Homero, a quem passa boa parte do livro criticando.
Também nessa cidade ideal os doentes que sofram de doenças incuráveis devem ser deixados sem tratamento, para que possam morrer em breve e não terem oportunidade de terem filhos, evitando assim passar a sua enfermidade adiante. Segundo Platão, essas pessoas são inúteis. A escravidão de povos não gregos é citada longamente sem nenhuma crítica. As mulheres podem ter os mesmos talentos que os homens, mas em menor escala. A democracia é considerada uma forma de governo ruim, inferior à aristocracia (o governo exercido pelos melhores, que para Platão eram os filósofos) e à oligarquia (o governo de poucos). Não vou fazer uma lista exaustiva com tudo o que me saltou aos olhos, mas, com certeza, ela não seria pequena.
As críticas à democracia talvez sejam o trecho mais interessante de todo o texto. Tantos anos atrás, Platão já identificava problemas na democracia que enfrentamos até hoje, como a influência incontrolável da riqueza sobre as eleições, o compadrinhamento e o nepotismo. Não posso concordar com o seu veredito sobre a forma de governo ideal, mas ainda assim é surpreendente.
Platão influenciou o mundo inteiro, muito além do que podia imaginar, a filosofia, as artes, as religiões cristãs. E mesmo com todas as minhas críticas, é surpreendente alguém, há tanto tempo, abordar tantos assuntos tão complexos, arte, ética, política, filosofia, tudo na mesma obra. Mas a leitura de A República, ainda que instrutiva, passou longe de ser prazerosa. Até onde me compete, Platão vai voltar ao passado e permanecer por lá.
- "Vânia não gosta de samba. Ou ela é surda, ou é doente do pé. Vânia não é surda, logo é doente do pé." é um exemplo de falsa dicotomia. Nesse caso, o raciocínio está errado porque Vânia pode não gostar de samba por ser ruim da cabeça ou qualquer outra razão que se possa imaginar.
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