Marc 12/09/2022
Da necessidade de dizer o óbvio
Existem várias interpretações sobre esse livro. Quem tiver curiosidade, recomendo pesquisar a respeito do misticismo e da questão política, que são interpretações com muitos adeptos e que conseguem lidar com aspectos isolados do livro. De minha parte, não pretendo citar, nem mesmo tentar discutir nenhuma delas, mas o ponto de confluência, me parece, é a resposta dado pelo autor através do livro. Nos dois casos, dadas as controvérsias do momento, o autor teria tentado colocar metáforas e signos escondidos tanto nos eventos, quanto nos personagens. A leitura do texto de Gustavo Franco sobre a questão política na América de fins do século XIX é bastante interessante e pode ajudar o leitor a encontrar uma complexidade que o próprio autor tentou negar existir no livro.
Referir-se a sua época é inevitável, claro, mas o problema é quando um livro não consegue dialogar com nada mais duradouro do que as figuras famosas e importantes, mencionar os debates e tomar uma posição neles. Isso diminui o texto e o torna quase indecifrável — ou ao menos sem interesse — para os leitores de outras gerações. Quantos não são os polemistas, pessoas notáveis em sua época, que foram totalmente esquecidos e que deixaram escritos de qualidade, mas que estão mortos devido ao assunto que tratavam e não conseguiram entregar nada mais do que isso? Se nosso autor fizesse parte desse grupo, seu livro não continuaria sendo lido por nós. Por essa razão, mesmo considerando um tipo de interpretação elaborado, não me detenho nele, afinal, não faço a menor ideia dos personagens da época e sei que o debate em torno do padrão ouro na moeda já foi superado há muito pelos americanos. Sendo assim, acredito que devemos nos concentrar naquilo que o livro oferece que é capaz de dizer algo a nós e continuará válido para o futuro.
Dorothy vive num lugar afastado e tem pouco contato com outras pessoas além do tio e da tia. Sua vida é monótona, mas também segura. E aqui, logo nas primeiras páginas, Baum demonstra, através da repetição da cor cinza na caracterização do ambiente, que ela está entediada e triste, em alguma medida. Mas esse é seu mundo e ela se sente segura nele. O tornado é um elemento que desestabiliza completamente sua vida, que a transporta para uma situação totalmente nova e excitante, mas igualmente perigosa. Numa vida completamente ordenada, previsível e monótona, as irracionalidades aparecem como um vendaval capaz de destruir tudo. Por mais que façamos cálculos e previsões, sempre vai haver um momento em que algo escapa e nos obriga a refazer nosso modo de pensar. O ciclone diz: você pode viver no conforto com alguém trabalhando por você uma parte da sua vida, mas um belo dia a realidade vai lhe alcançar e você vai se descobrir só na vida, portanto, desenvolva capacidade de lidar com os infortúnios. Mesmo uma vida perfeitamente ordenada será, em algum momento, desestabilizada pelo caos. Talvez você perca tudo, mas se tiver desenvolvido sua personalidade, os desafios do caminho serão enfrentados mais facilmente.
Dorothy chega a OZ e provoca uma mudança instantânea: não apenas sua presença é uma novidade, mas ela mata a bruxa do leste quando sua casa aterrissa e pega os sapatos prateados dela para poder percorrer a estrada de tijolos amarelos com mais conforto.
Ali, diante da irracionalidade que o imprevisto traz, ela sonha em voltar para sua vida segura e conhecida. As novidades a assustam e ela mal consegue reagir ao que lhe aparece. Sua primeira grande ação se deve totalmente ao acaso e ela se beneficia dela da mesma forma, indicando que em alguns momentos da vida as mudanças trazem benefícios, mas se quisermos que elas sejam assim a maior parte das vezes, precisamos nos por a caminho de um objetivo e trabalhar por ele. Cada tijolo é um passo, literalmente um tijolo na construção da personalidade de Dorothy, pois é disso que se trata. O mágico, a fantasia de que tudo pode se resolver e os problemas acabarem, serve como o objetivo a se alcançar, aquilo que vai motivar a garota, mas é a jornada o mais importante. O caminho se faz ao caminhar — como sabemos — e para que amadureça, Dorothy vai precisar desenvolver certas características que a farão forte ao fim da jornada.
Ela precisa aprender a lidar com as adversidades trazidas pela mudança. Tudo que ela conhece e sabe não é suficiente aqui. Até mesmo uma simples peça de roupa é mágica e pode ser a chave para a realização de seu maior desejo, mas como está presa ao que sabe, sem investigar a nova realidade, apenas reagindo a ela, Dorothy não se pergunta sobre nada de estranho que aparece. Lhe contaram que havia um mágico muito poderoso na cidade de esmeraldas, localizada ao fim da estrada de tijolos dourados e ela decide seguir nesse caminho para voltar ao ambiente conhecido.
A estrada é um símbolo inequívoco de amadurecimento. E o que a menina vai ganhar nessa aventura é justamente isso, porque os desafios que enfrentará são muito maiores do que poderia supor. Mas o que significa amadurecer, o que quer dizer quando somos ainda crianças e temos, ao menos em possibilidade, uma vida inteira diante de nós e devemos aprender a lidar com ela? Precisaremos desenvolver certas capacidades que nos tornarão mais aptos a não sucumbir aos desafios que a vida lança sobre nós. É por isso que o tipo de comentário sobre o livro afirmando que cada um dos personagens possuía aquilo que mais buscava ou precisava não se sustenta: Dorothy precisa aprender a lidar com a vida e para isso precisa primeiro adquirir e depois desenvolver tais características e talentos. Baum está dizendo a todas as crianças aquilo que de melhor podem adquirir para se tornarem pessoas fortes e que farão a diferença no mundo.
Assim, a primeira virtude que a menina precisa aprender é a da Inteligência, personificada no Espantalho. Ele é curioso, capaz de raciocinar com base na experiência passada, mas ponderando sobre as probabilidades de seu conhecimento não ser suficiente. O Espantalho ensina que a inteligência é, na verdade, a capacidade de ser previdente, observador e aberto às possibilidades que aparecem pelo caminho. Quanto mais nos fechamos ao que nos cerca, evitando pensar sobre os novos elementos que surgiram, mais tendemos a perder tempo na vida e cometer erros — se Dorothy já tivesse desenvolvido essa capacidade, investigaria seus sapatinhos de prata e voltaria rapidamente para casa. Mas, embora isso pareça uma crítica à menina, na verdade é o caminho natural da vida. Ninguém nasce sabendo das coisas, nem como lidar com elas, é preciso viver e levar alguns tombos pelo caminho para que se aprenda.
O Espantalho foi criado e está confinado ao campo que vigia. Seu conhecimento prático da vida é quase nenhum, ele lida com as questões teoricamente de onde está. Quando a menina o tira de lá, ele passa a ter que usar esse conhecimento teórico confrontado com a realidade. E, na maioria da vezes, ele obtém sucesso, porque consegue calcular o que pode acontecer, mesmo o fracasso. O saber empírico é importante, assim como o teórico, Baum parece querer mostrar; no entanto, o grupo não iria a lugar algum se a inteligência não fosse também abertura para o novo, para as descobertas e como elas devem ser analisadas à luz daquilo que se conhece, mas com a ciência de que trazem uma nova dimensão, algo desconhecido, que só pode ser especulado e vai modificar os planos.
Em seguira, a menina conhece o Lenhador de lata. Depois que desenvolvemos o raciocínio, o que falta? Aprender a lidar com as pessoas e os outros seres vivos. É preciso amar, pois não há forma mais correta de conviver com as pessoas. E esse personagem acaba sendo uma metáfora muito complexa, porque é comum ele enferrujar por excesso de amor, por sofrer com o sofrimento dos outros. E a ferrugem significa imobilidade, significa que mesmo com a inteligência para prever os caminhos, ainda vamos nos magoar com a vida e ficaremos imobilizados com nossa própria dor e a dos outros. O mundo é um lugar muito mais triste do que se costuma pensar, ele vai nos magoar e não poderemos evitar que isso aconteça. É digno de nota que apesar de todo o sofrimento do Lenhador, ele não desiste de sentir empatia pelos outros, não desiste de ser cordial e prestativo, de servir às pessoas e ajudá-las com todas as forças de que dispõe. Ao mesmo tempo, ele carrega um machado, instrumento capaz de ferir e até matar. O amor é dúbio, portanto, podendo se tornar perigoso facilmente. Há o risco de sofrimento próprio, de se paralisar para sempre com um coração partido com alguma injustiça da vida; mas há, também, o risco de desejar desenfreadamente, de avançar sem nenhum limite e destruir tudo que estiver ao seu redor. O amor, sem a inteligência é um instrumento afiado em mãos inábeis, gerando dor a todos no caminho.
A inteligência do Espantalho, podemos dizer agora, sofre de insensibilidade. Baum diz que o cérebro que o Mágico cria para ele é pontiagudo, afiado, no sentido de ser muito esperto, mas, obviamente, capaz de ferir por essa mesma agudeza. Sem o amor, o Espantalho seria capaz de fazer o mero cálculo sobre os melhores caminhos e levar o grupo a um campo de papoulas, por exemplo. Se não houver empatia (mais que isso, amor) pelos semelhantes, a inteligência é, por sua vez, cega. As duas primeiras virtudes, nos inúmeros diálogos que travam durante todo o livro, são igualmente necessárias e se complementam. Uma sem a outra jamais seria capaz de levar Dorothy a lugar algum.
Mas chega um ponto em que ambas tendem a fracassar. Depois que os desafios da vida nos imobilizam por serem demasiado cruéis, ou porque alcançamos objetivos sem nos importar com o entorno e nos afastamos de todos, é preciso coragem para prosseguir e rever nossos erros, para que possamos verdadeiramente aprender com eles. O Leão covarde é o personagem que vai ensinar a menina a continuar mesmo quando tudo o mais falha, quando estamos nos perguntando sobre o sentido daquilo que estamos fazendo, ou sobre sua utilidade. E, claro, a coragem sem inteligência é burrice e sem amor, violência. Veja como cada virtude está numa relação dialética com as demais, sempre numa via de mão dupla. É por isso que o Leão está ali, porque em determinados momentos da vida, só resta mesmo a coragem, pois tudo o mais se esgotou, todos os outros recursos falharam e só voltarão a poder tomar o controle da situação se conseguirmos pular um abismo de incompreensão e de indiferença que a vida nos opôs.
Embora o Leão seja imponente e assuste a todos, é medroso. Ele não tem consciência de sua força e nem imagina o quanto pode fazer pelos outros. Quando o grupo se aproxima dele, seu comportamento é tentar afugentar o grupo. Não lhe passa pela cabeça nem amor pelo grupo, nem que eles podem ser amigos e se ajudar mutuamente. Mas ele é desmascarado e passa a defender os amigos com muita bravura. Direcionada para um objetivo e com amor pelos outros, a coragem de servir, de arriscar a vida pelos outros mostra que ele compreendeu o que se deve fazer na vida.
Aqui eu volto a pensar nos comentários que encontrei sobre o livro. Se fala de uma arquitetura muito bem definida: a cidade de esmeraldas fica bem no centro do reino de OZ, assim como o capítulo em que chegam a ela ocupa exatamente o meio do livro, por exemplo. E há vários outros exemplos, como as bruxas malvadas do leste e do oeste e as bruxas boas do sul e do norte (a simbologia da Cruz merece um estudo aprofundado aqui, porque o eixo leste-oeste é o mundo, com suas vicissitudes e o eixo sul-norte representa a ascensão do sujeito ao mundo espiritual, mas isso não pode ser feito aqui, muito menos por alguém com pouco conhecimento a esse respeito como eu — me limito apenas a registrar isso aqui). Mas a arquitetura realmente elaborada do livro está na maneira como os personagens se complementam, como cada um isoladamente — momento em que suas qualidades se tornam defeitos, por serem extrapoladas — é incompleto e como o grupo consegue ser forte e capaz de lidar com todos os desafios. Não apenas isso, mas a ordem em que cada virtude aparece para a menina. De que serviria coragem sem inteligência e empatia? Ela teria entrado em uma luta com qualquer pessoa ou criatura que encontrasse assim que chegou a Oz. O mesmo serve para as outras virtudes, mas é somente quando encontra Oz que a menina vai compreender a real importância da personalidade.
O que a menina pode precisar além das virtudes que foi acumulando em sua trajetória? A resposta: a realidade. O Mágico é uma mentira, é apenas um oportunista que se aproveitou do misticismo e ignorância das pessoas daquela terra e se tornou seu líder, vivendo no conforto desde então. Mas ele ensina uma lição importante para a menina, porque mesmo depois de preparados para a vida, ela ainda pode nos surpreender e descobrimos que nada do que sabíamos era verdade. Ele pede que a menina mate a Bruxa Má do Oeste, uma missão visivelmente suicida, que ela não tem como vencer, mas essa é a condição para ajudar o grupo. Eis um personagem nada bondoso, interesseiro e que negocia com a vida das pessoas que vão lhe procurar, mas a vida, infelizmente, é assim: vida e morte estão presentes o tempo todo, viver é arriscado e a morte pode chegar a qualquer momento.
O que diferencia o mágico (realidade) das outras aventuras? É que ele era o objetivo e tudo o mais era a trajetória para se chegar lá. Ele era quem possibilitaria que todos alcançassem seus sonhos e Dorothy esperava voltar para casa. Mas depois de tantos desafios, que eram vencidos pela menina porque ela estava motivada pensando que eles eram tudo que ela teria que enfrentar para voltar para casa, ao conhecer o Mágico, descobre que ainda há mais para se fazer, que o fim não era o fim e ela não seria feliz como imaginava. É o sonho da vida que, descobrimos muitas vezes, não encerra nossa jornada e abre para uma miríade de novos e — ainda mais — perigosos desafios. É dessa maneira que a menina descobre que só realizamos nossa vocação ao salvar nossas circunstâncias, ao conseguir realizar algo de valoroso transcendendo nossa realidade mais imediata: ela não tem poder aparente para superar a Bruxa Má do Oeste, mas consegue de uma forma involuntária se tornar forte e derrotá-la. Nesse momento, diante de seu maior desafio, quando nenhum de seus amigos estava a seu lado, quando ela não podia contar com mais ninguém, a menina superou a si própria e venceu.
Não vale a pena seguir detalhadamente o livro, esmiuçando todos os acontecimentos, porque a jornada de amadurecimento da menina só se completaria quando ela, desolada pela “fuga” do Mágico, sai à procura da Bruxa Boa do Norte e descobre que sua salvação estava com ela desde o início. Mas essa salvação não era uma qualidade, não era algo que ela tinha em seu cerne e desenvolveu. A fortuna sorriu para ela, mas foi só depois de amadurecer que ela pôde usá-la, ou seja, só depois que passou por todos os desafios possíveis é que se tornou capaz de usufruir o presente que a vida havia lhe dado ainda no início.
Baum escreveu vários outros livros sobre Oz, criou muitas aventuras e levou os personagens a muitos outros desenvolvimentos, mas esse livro, naquilo que caracteriza a literatura infantil, é completo. Ele coloca a protagonista em um ambiente hostil, totalmente desconhecido e ela precisa aprender a lidar com isso até se tornar forte e conquistar aquilo que buscava. Uma jornada de amadurecimento, que mostra para as crianças aquilo que Chesterton dizia ser a característica dos contos de fadas: não que dragões e monstros existem — pois existem, elas sabem — mas que eles podem ser vencidos.