R...... 01/03/2017
Memórias da Emília (1936)
Parece um sonho maluco, onde realidade e ficção se misturam. Pudera, a construção é onírica, enfatizando o imaginário infantil com aspectos do contexto de época. Lobato era antenado nessas questões, por isso é um livro moderno em sua proposta. Acredito que muita gente achava estranho, por serem apegadas a uma estética tradicionalista, mas as crianças deviam curtir, reconhecendo coisas que as instigavam.
A proposta tem suas virtudes, mas também teve pontos negativos, não por reproduzir o contexto de época (em coisas impactantes hoje), mas por Lobato posicionar-se de forma ultraconservadora em umas, enquanto que em outras era progressista e inovador. Se estritamente valorizasse um apelo educacional, como se propunha, o Sítio teria importância muito maior, com ares revolucionários (se é que essa palavra caiba aqui, não me veio outra) na literatura nacional. Ele, porém, deixou certos aspectos sem um contraponto.
Falando no surreal, maluco mesmo é a voz de Reny de Oliveira soar na minha mente em cada fala da Emília. Sério. Se há uma Dona Benta eternizada no vídeo, a Emília da Reny é a que ficou gravada em minhas memórias como a mais representativa e preferida. Ah, deixa esse negócio de memórias para a Emília, que no livro fala mais ou menos assim:
Lobato valorizava os livros e isso é notório (tem até aquela famosa frase que os sabidos de plantão lembram), então não é surpresa que isso se reproduzisse em suas personagens. Dona Benta, Visconde, Dona Carochinha... Agora é a vez desse apego se reproduzir na Emília, sua mais representativa personagem e ícone infantil. A pequena inventou de escrever suas memórias, instigando uma gostosa brincadeira, onde a invenção literalmente se faz presente. Com ajuda do Visconde, mãos à obra...
A história tem três momentos, que trazem a percepção de mundo da boneca. Evidentemente, com pontos legais na percepção infantil, mas também bizarros em outros, principalmente por Lobato calar sua objetividade educadora em alguns deles. Estou falando da caracterização relacionada à Tia Nastácia, que é o que "mais pega" na série. Qual é?! Ele deixou em suspenso o mesmo conceito do "Negrinha". Mas ali a situação, embora provocativa, era didática pela mensagem sensibilizada. Aqui, porém, estava falando com crianças, que vem apenas o imediatismo e precisam de alguma forma de orientação. Oras! Se o Visconde e a Dona Benta contrapõe e influenciam no saber das crianças, com suas informações, caberia também no trato com a personagem um contraponto, uma orientação. Lobato escreveu coisas que em certos momentos são muito agressivas e extremamente ofensivas, como neste livro, em que a Emília leva a Tia Nastácia às lágrimas e a gente nota que fica por aí, com os termos ofensivos presentes na fala de personagens e, o que é pior, no texto do narrador. Fala-se muito que ele reproduz apenas o contexto de época. Concordo, mas a minha questão é que ele não se interpôs a isso de nenhuma forma. Que se reproduzisse (apesar de que, em alguns momentos ele deu muita vitalidade nisso), mas se construisse também uma interposição, um processo educativo. Como seria fantástico e histórico a turminha nessa aprendizagem, mas ele preferiu nesse aspecto o tradicionalismo, procurando manter as coisas assim em toda a coleção.
Penso também que, se faltou ao autor essa sensatez, nas edições atuais não podem faltar, valorizando-se as obras com notas explicativas, o que até hoje não ocorreu, e se é para deixar sem elas, então sou favorável que se retire certas frases. Algumas até usam o nome de Deus para justificar a agressividade.
Sei que o povo daquele tempo ficaria escandalizado com algumas coisas dos dias atuais, mas uma não justifica outra. É o que penso.
Voltando à história, Emília começa registrando suas origens e não há nada diferente do que conhecemos. Então se inicia a história do anjinho (Flor das Alturas). A narrativa vai ficando surreal e personagens da atualidade (fictícios ou não) chegam ao Sítio para conhecer o anjo. A notícia tornara-se midiática nos jornais, rádios, telégrafos e vários líderes mundiais desejam conhecer ou enviar suas crianças. Entre eles o Fuhrer da Alemanha, o Duce da Itália e o Imperador do Japão. Reconheceu essa turma? Formariam o Eixo na Segunda Guerra, que explodiria três anos depois dessa publicação. Lobato apenas registrou líderes que estavam em evidência naquele momento, naquilo que disse de estar antenado com o mundo. O Presidente Roosevelt também foi citado.
Os personagens da ficção citados foram Popeye, Alice, Peter Pan e Capitão Gancho. O arranjo entre eles é surreal, chegando ao sítio ao embarcarem em um navio na Inglaterra que trouxera crianças. Nessa história há um duelo entre Popeye e o Capitão Gancho, e entre Pedrinho e Peter Pan contra o famoso marinheiro. Há a clara valorização nacionalista, que vilaniza o marinheiro e faz com que leve uma homérica surra, ao ser engambelado pela Emília. Acho que esse lance tem correlação com o fascínio da luta livre no contexto de época (sedutor para muitos, como às crianças, que deviam ter nisso ídolos e quem sabe eventuais brincadeiras). Achei certas partes bastante violentas, de ênfase dispensável, mas quem ditava as rédeas, nesse caso, era o oportunismo de Lobato.
No segundo momento a turminha vai para Hollywood onde encontra-se com a famosa menina prodígio Shirley Temple e juntos encenam uma peça do Dom Quixote, visando uma fita (filme) pela Paramount.
Aspectos, em uma e outra história, que fazem as crianças brincar com novidades ou projeções conhecidas no seu meio, em uma percepção inusitada e atrativa para elas.
O terceiro momento é a visão de mundo da Emília. Um texto ingênuo e bonito no início, mas também forte em certos detalhes por Lobato escolher a caduquice neles. A boneca derrama seu amor pelo Sítio e cada personagem é citada com um carinho em especial. A tia Nastácia está entre elas, mas continua também uma certa ignorância (e nenhuma interposição do autor).
Assim é o livro, o quarto que esse ano reli da coleção do Sítio. Destes, até agora foi o que teve um episódio mais agressivo, por isso citei com um pouco da opinião. Esse episódio se desenrola entre a história das crianças vindas da Inglaterra e a viagem para Hollywood.
Um parecer final. Acho também muito infeliz as considerações e percepções de Lobato direcionadas à Cristo. No início ele sugere que Cristo é mentiroso, com uma interpretação equivocada das Escrituras Sagradas, e no texto final da Emília ele também insinua que o sacrifício de Cristo é inútil e não salva ninguém. Tudo nas entrelinhas.
Cada um com a sua concepção e opinião. As minhas são assim...