Andreia Santana 07/09/2010
A origem do mundo em uma canção de amor e ciúme
O Silmarillion reúne novelas e contos que explicam e definem as origens de Arda (a Terra Média), mais precisamente a criação, a primeira e segunda eras e o comecinho da terceira. Seguindo uma lógica narrativa, seria uma espécie de abre alas para a saga de O Senhor dos Anéis (essa toda ambientada na terceira era de Arda), embora as histórias que o compõem tenham sido escritas, abandonadas, retomadas e reescritas pelo autor em diversas ocasiões diferentes no decorrer dos anos.
Iniciado por volta de 1925, como um conjunto de esboços dentro do projeto maior de J.R.R.Tolkien de criar uma mitologia nova a partir de antigas tradições, só virou livro na década de 70, quando Christopher Tolkien, filho do autor, reuniu e, – na medida da necessidade para criar uma narrativa coesa – remodelou (editou, mais precisamente) alguns dos textos do pai, tornando as partes dispersas em um todo com sentido e encadeamento. Há quem reclame das interferências do herdeiro na obra de Tolkien. Prefiro acreditar que as pistas para a publicação póstuma de muitas obras, o próprio pai deixou nos cadernos e outros rascunhos a lápis que antes de ser artigo raro disputado pelo mercado editorial, constituem-se em um fascinante acervo que demonstra o processo criativo de um gênio.
A ideia inicial de O Silmarillion remonta a 1917, quando Tolkien servia ao exército durante a I Guerra. A tentativa de publicação inicial só viria após o sucesso de O Hobbit (a novelinha fascinante que ele escreveu para entreter os filhos pequenos), mas a editora do escritor rejeitou o trabalho por considerá-lo sombrio e muito apegado à tradição celta. Em si, a ideia de O Silmarillion não é mesmo tão inédita quanto seria a de O Hobbit, por exemplo. Cinco, seis mil anos antes de Tolkien existir, diversos povos antigos explicavam a origem do mundo a partir de uma grande canção dos deuses. Mas o escritor foi mais além e com o Ainulindalë (a música dos ainur – capítulo de abertura), tornou a música palpável, dotada de uma poesia de carne, osso e sonho. No caso desse autor em particular, por mais etéreo que seja um sonho, é sempre denso a ponto de sentirmos na ponta dos dedos. O “mundo que é”, ou seja, esse aqui onde levamos nossas existências, nasceu de uma grande orquestração divina, em que cada nota, até as dissonantes, são indispensáveis. Pena que os editores do escritor não tenham percebido isso na época.
A metáfora da música como mito de origem da humanidade e da própria vida é de uma poesia e um lirismo só compreensíveis aos que ainda se permitem atentar para os sons ao redor, desde o arrulhar de um pássaro ao marulhar das águas de um córrego. Em tempos de tanta cacofonia, tornamo-nos cada vez mais surdos para a sutileza da “música dos ainur” e é aí que O Silmarillion, embora fale de deuses, elfos e homens, e mesmo com sua inconfundível marca celta, mantém-se tão atual 85 anos depois de seus primeiros esboços.
Nova mitologia, crenças antigas - O que o autor propõe é o resgate e a recriação dos mitos que explicam nossa existência. Herdados desde muito antes do florescimento da civilização greco-romana, mas consolidada a partir daí no Ocidente. Sem esquecer lógico, as contribuições de todos os povos nórdicos, anglo-saxões, celtas (olha eles aqui de novo) e muitos outros que se misturaram no caldeirão cultural do qual o próprio autor fazia parte. Desde que o homem aprendeu a contar histórias, utiliza narrativas de amor, ódio, encontros e desencantos, disputas de poder, vaidade, heroísmo e abnegação para atribuir sentido a si mesmo e ao ambiente em redor. O que Tolkien faz é estabelecer as próprias regras e a partir de elementos ancestrais de uma cultura, cria um mundo próprio, povoado de metáforas e encantos.
Profundo estudioso da cultura britânica, linguista e filólogo, é inegável a erudição do autor nas novelas e contos que compõem O Silmarillion – e em todas as obras anteriores e posteriores -, mas o que fascina é que todo esse conhecimento está misturado a uma capacidade de contar histórias como se ouvíssemos uma voz muito antiga e cálida embalando nosso sono.
Em termos de densidade e dramaticidade, O Silmarillion não fica atrás de outras obras de Tolkien. É um livro trágico, épico e grandioso, como bem manda a tradição dos mitos e lendas antigos e das novelas de cavalaria medievais. Quando existe, a redenção só chega á custo de muito sacrifício, uma referência tanto a religiosidade do autor quanto ao contexto histórico em que ele viveu. E aqui, essa religiosidade vem tanto da herança “pagã” dos celtas, quanto da cristianização da Europa. Não há como fugir dessa tradição, principalmente porque a produção dele se concentra no começo do século XX, mais precisamente no período entre as duas grandes guerras, onde provações, heroísmo, descrença e apego ao divino, por mais que sejam sentimentos opostos, conviviam juntos no mesmo imaginário coletivo.
Medieval e sombrio - Dividido em cinco partes, O Silmarillion cobre desde a criação do mundo, até a chegada dos filhos primogênitos (os elfos) à Terra Média, o ciúme destes para com os filhos mais novos (os humanos), as guerras entre elfos e humanos, que remodelaram a Terra Média e abriram caminho para os acontecimentos que vemos em O Senhor dos Anéis, a queda das cidades élficas e a separação (ruptura) entre o mundo humano e o divino. Neste conjunto, destaque para as baladas românticas - que remetem ao cancioneiro medieval - de Beren e Luthien e Turim Turambar (esta última publicada também nos Contos Inacabados e em separado, em versão ampliada, em Os Filhos de Hurín).
A maior parte da obra é justamente a novela sobre as silmarills, de onde o livro retira seu nome. O Quenta Silmarillion mostra a criação das pedras mágicas, a partir das árvores de luz de Valinor (a terra dos valar, dos deuses) e o rastro de sangue que elas deixam ao serem cobiçadas por elfos, humanos e criaturas da escuridão. O livro termina na transição entre o fim da segunda era e o começo da terceira, com a forja dos anéis de poder e a dominação de Sauron, o segundo senhor do escuro e ex-discípulo de Morgoth, o valar que, por ciúmes, se bandeou para o lado das trevas, numa alusão inegável a Lúcifer, o anjo caído que, também por inveja, introduz o mal no mundo e nos corações humanos.