André 20/11/2023
Verne e seu personagem imortal
Apesar de ser um escritor extremamente profícuo, de ser reconhecido como um dos fundadores, junto a H.G. Wells, desse gênero elusivo - para alguns mais uma criação do mundo editorial do que uma inovação literária de fato - derivado da narrativa fantástica de Maupassant e Poe chamado ficção científica (ainda que possamos nos remeter a pioneiros como Kepler, Jonathan Swift, Shelley e mesmo Bacon e Platão, a depender de nossas predileções teóricas), Júlio Verne destacou-se muito mais pela criação e descrição de paragens exóticas, além do embasamento científico dos eventos e objetos fabulosos em suas histórias, que por grandes personagens míticos.
A exceção, nesta que é sua obra prima, é o Capitão Nemo: o elusivo inventor e coordenador do fantástico submarino Nautilus, que opta pela vida de um eremita genial dos mares junto a uma misteriosa e leal tripulação, que adota como única bandeira aquela ratificada pelo monograma do nome com que se batizou após sua rejeição do Homem - Ninguém.
Em meio ao entretenimento causado pela grande aventura dos nossos três protagonistas arquetípicos - o intelectual e sensível Professor Arronax, o fiel criado Conselho e o homem de ação Ned Land - nos aprofundamos nos mistérios dessa enigmática criatura Nemo.
Agradeçamos ao tino comercial do editor de Verne, que temendo boicote russo com um Nemo aristocrata polonês despossuído, contribuiu ainda mais para esse enigma hipnótico tornando a etnia, a nacionalidade e a origem de Nemo - e de sua nação algoz - completamente ambíguas ("A Ilha Misteriosa" canonizaria um Nemo indiano, Príncipe Dakkar, filho de um rajá subjugado pelo domínio britânico - uma decisão com alguns méritos, mas que vale discussão outrora).
Tudo neste romance é o ofício de Verne levado ao seu paroxismo: a descrição e invenção científica quase devaneante da vida e ambiente marinhos, inspirada na Geografia, Geologia, História Natural e Ciências Físicas de sua época; a invenção do engenho fabuloso do submarino Nautilus, finamente detalhado em seu funcionamento técnico e ao mesmo tempo preservando todo o mistério e encantamento de uma fera mítica; a jornada global fantástica e estonteante pelos oceanos terrestres, precisamente detalhada geograficamente, a ponto de seguirmos facilmente a jornada do Nautilus em um mapa-múndi mental; a ação ocorrendo em um cenário constituído da fusão do reino fantástico e do país geograficamente detalhado, misturando Lenda e História; e o herói, antagonista e Demiurgo Destruidor (Brahma e Shiva, se adotamos o tema hindu tardio adicionado ao personagem) da narrativa, o Capitão Nemo - o cientista romântico, o engenheiro aventureiro, o eremita engajado, o campeão anti-colonial apaixonado pela ciência e a cultura colonial - enfim, a encarnação de todo o paradoxo que é o romance, que é a arte científica de Verne.