Albarus Andreos 04/07/2015Diamante num mar de falsos brilhantesDificilmente acredito naquelas recomendações que vem nas capas ou contracapas dos livros. No caso, uma de George R. R. Martin: “Entre as inúmeras obras de fantasia lançadas atualmente, os livros de Robin Hobb são como diamantes num mar de falsos brilhantes”. Primeiro porque já li outras recomendações de mestre George completamente furadas em obras que pareciam muito boas mas que acabei constatando serem bem fracas (os falsos brilhantes de que fala); depois, que uma declaração de uma estrela da fauna literária recomendando uma obra de um colega pode ser tremendamente tendenciosa se os dois forem chapas. Para tirar a dúvida, nada melhor que ler um trecho, um capítulo talvez... Quem sabe uma boa resenha, mas nada melhor que a obra mesmo. E, com mínimas reservas, O Aprendiz de Assassino (Editora Leya, 2013) da norte-americana Robin Hobb, é muito bom.
Continuando a babar o ovo da autora, Hobb escreve demais! Lembra Patrick Rothfuss, em alguma medida. Absolutamente consciente de sua narrativa, da estrutura do romance e de como expressar suas ideias de forma clara, cada uma delas preciosamente bem escritas, os aspectos psicológicos se coadunando perfeitamente com os arquétipos engendrados, ótima noção de tempo, de cadência, de andamento, de encadeamento dos fatos. Personagens perfeitamente críveis se metendo em situações perfeitamente possíveis dentro do universo fantástico que propõe. Cada um deles cheio de carisma, ou não, conforme sua natureza, mas todos absolutamente coesos. O livro tem quase tudo o que eu gosto em fantasia: o clima medieval real onde estrume, sangue e lama se misturam com lâminas, armaduras e magia bem dosada, mas um pouquinho mais de ação seria muito bem vindo.
Começamos essa obra com o garoto sem nome, o bastardo de um nobre local, um príncipe de nome Cavalaria. Isso soa estranho, portanto não vou deixar para depois para esclarecer que cada um dos nobres tem um nome que ressalta uma característica de personalidade, como Sagaz (o rei), Veracidade (o irmão de Cavalaria) ou Breu (o tutor do garoto). Isso é explicado no texto. É dito que os pais dão esses nomes aos filhos para que cresçam com aquela característica. Mas por que alguém daria ao filho o nome de Breu? Ou Bronco, no caso do cavalariço que adota o menino, no início do livro? Bronco o chama simplesmente por Fitz, que significa simplesmente “bastardo”. E que diacho significa Cavalaria? Isso é característica de quê? Até a página 190, a única farpa (ou uma esquisitice da autora) que posso localizar na obra. Todo o resto é absolutamente absorvente.
Com a ajuda de Bronco, Fitz vai aprendendo a se virar no mundo em que foi jogado aos seis anos, dormindo com os cães no celeiro, limpando os estábulos e sendo alvo do bullying de todos, por ser filho ilegítimo do príncipe herdeiro. Isso é, ao mesmo tempo, uma espécie de proteção para o garoto, membro da família real, queira ou não. Como bastardo, Fitz teria o futuro de qualquer plebeu, até que Cavalaria renuncia ao seu direito de herança, a pedra sobre qualquer hipotética pretensão do menino ao trono. Contudo, o ato começa a se mostrar exatamente o contrário.
Pressões começam a pipocar de vários lados. A nova rainha, a segunda esposa de Sagaz, tem outro filho, Majestoso, e gostaria de vê-lo no trono, em vez de Veracidade, o próximo na linha de sucessão, e o pequeno Fitz a incomoda por ser filho de Cavalaria, a quem o povo sempre viu como o herdeiro ideal, habilidoso, forte, competente, o diplomata nato, o governante ideal – é que, com uma simples canetada, o rei pode reconhecer Fitz com herdeiro de Cavalaria, coisa extremamente improvável, mas até aí, o rei é o rei. Há algo na narrativa que instiga, que nos leva a crer que há mais para ser descoberto, principalmente porque Fitz começa a revelar certos “talentos”. Ele entra na cabeça dos animais e mesmo das pessoas, vê a verdade nelas. Bronco chama isso de “Manha”, o que é extremamente mal visto num nobre, e o dissuade totalmente de usar essa habilidade.
Breu surge então, quando Fitz cresce um pouco mais. Há magia nele. É misterioso, um homem velho e magro que parece e some por dias sem aviso. Breu ensina-lhe coisas sobre o mundo e Fitz descobre que o rei Sagaz quer que ele seja sim um sucessor, mas de Breu: um assassino! Fitz, um rapaz doce, tranquilo, sem o menor talento para o mau, jamais imaginou que o rei poderia estar prestando atenção nele. Nunca foi o avô que um menino teria, praticamente nunca falou com ele. Definitivamente há uma subnarrativa que está se descortinando; até porquê, outro personagem, o Bobo, é mais uma fonte de enigmas que precisam de esclarecimentos. O chão é movediço e sorrateiro. Hobb, por trás do clima sereno, sabe incutir essa curiosidade tensa ao seu texto, com habilidade ímpar.
Mas a história parece arrastada demais. Tivemos a invasão dos Navios Vermelhos e seus saques pelo litoral, mas isso foi mostrado de forma indireta, com informes que chegaram das vilas afetadas, falando da invasão dos ilhéus e como eles “forjavam” as pessoas, tornando-as irreconhecíveis, quase como zumbis. A autora fez questão de manter o mistério sobre o que é isso exatamente, quem são os Ilhéus, ou por que isso é feito. Fitz é enviado para averiguar, mas pouco descobre. Hobb deliberadamente descarta cenas de batalhas e demais movimentações. Não se interessa pela aventura, pelo thriller, pela ação.
E faltou muito mais disso. O treinamento do garoto para se tornar um assassino é suspenso para que ele seja treinado no “Talento”, habilidades mentais parapsicológicas que poderiam ajudar Veracidade e o rei Sagaz a derrotar os Ilhéus, mas como todo livro que mostra um jovem em treinamento, esse período é difícil, árduo, entediante e frustrante, e sempre que isso ocorre o próprio livro se torna “difícil, árduo, entediante e frustrante”. Sim, o livro é, em grande medida, enfadonho! O prato contém um ótimo tempero, alguns raros até, cozinhado com cuidado, tudo bem mexido, mas cadê a carne, a substância? Precisamos de uma boa história!
Com a falta do que fazer, temos o passar dos dias de Fitz cuidando de seu cachorrinho, vendo-o crescer, o afeto que aumenta, o menino solitário que é mal visto por quase todo mundo, sua ânsia por se libertar das amaras impostas por Bronco, que continua tomando conta dele como se ainda fosse uma criança, e seu relacionamento com Molli, a menina da cidade, fabricante de velas, que também vai crescendo e se torna o amor platônico de Fitz. É muito fofo, toda essa coisa com o cachorrinho, mas... Arrgh! (imagine meu dedo sendo enfiado pela minha goela). Ao invés de se chamar O Aprendiz de Assassino, o livro poderia se chamar O Menino do Pet Shop, que seria mais fiel e evitaria que eu me intrometesse numa obra que não é minha praia. Sinceramente.
Ficou a impressão de que poderíamos ter um livro melhor se a autora se interessasse minimamente por alta fantasia, coisa que parece temer incorporar ao texto. A magia é um auxiliar, importante até, para a trama, na parte final, mas o mau jeito do menino dá a ele um tom irritante. Fitz não é o herói que se espera, resolvendo enigmas e enfrentando assassinos, se aproxima muito do Kvothe, de O Temor do Sábio, de Patrick Rothfuss, segundo livro da série O Nome do Vento (o primeiro livro é uma joia literária e figura entre um dos melhores livros da minha vida, mas o seguinte está muito longe disso). Temos uma sensação de que Hobb força a barra para que ele sobreviva ao que se desenvolve no quarto final da obra. Fica até uma sensação de perda de credibilidade, o que é muito ruim para um escritor.
Não achei o livro tão bom assim, no final, mas certamente é acima da média, como bem disse mestre Martin. Uma obra um tanto parada, para meu gosto, mas que facilmente agradará outros paladares menos afeitos Às Crônicas de Gelo e Fogo que, sem intenção, parece se tornar meu padrão para séries literárias de fantasia. Já tenho o segundo volume da saga de Fitz aqui, na minha estante. Vamos ver se os defeitos que apontei diminuem. Talvez tenhamos finalmente uma arrancada na aventura e um acréscimo na emoção, coisa que O Aprendiz de Assassino realmente precisa.
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