Julia 10/11/2017Modéstia e Esclarecimento?Gosto de ler Jane Austen quando estou muito cheia de coisas para fazer, porque aí na hora de dormir leio um romance inteligente, mas pacato, sobre pessoas cuja vida passa num ritmo bem lento. Outro dia estava relendo Pride & Prejudce pela terceira vez, deitada na cama, quando me deparo com esta passagem:
"How despicably I have acted! I, who have prided myself on my discernment! I, who have valued myself on my abilities! Who have often disdained the generous candour of my sister, and gratified my vanity in useless or blameable mistrust! How humiliating is this discovery! Yet, how just a humiliation! Had I been in love, I could not have been more wretchedly blind! But vanity, not love, has been my folly. Pleased with the preference of one, and offended by the neglect of the other, on the very beginning of our acquaintace, I have courted prepossession and ignorance, and driven reason away, where either were concerned. Till this moment I never knew myself."
Não consegui mais dormir metade da noite. Estava com uma coisa me incomodando que não conseguia explicar para mim mesma. Quando li esse parágrafo, entendi tudo num relâmpago: tinha sido pega nos meus pontos fracos, sem nem perceber que eram pontos fracos. E quando alguém enfia e encaixa o dedo nas nossas feridas, esse alguém nos tira do nosso controle, conscientemente ou não, e foi isso que tinha acontecido comigo. Da mesma forma que Elizabeth, como eu me deixei controlar pela vaidade por tanto tempo! Da mesma forma que ela, até esse momento eu nunca conheci a mim mesma. E foi só desse conhecimento que eu precisava para deixar de ser uma escrava de mim mesma.
Depois dessa epifania fui assistir o filme pela décima vez, e vi como fica devendo ao livro - acho que é o melhor filme que poderia ter sido feito para o livro, é um dos meus filmes preferidos, mas o desenvolvimento psicológico é tão bem trabalhado no livro, que é intraduzível para um filme (foi muito desafiador fazer um filme sobre essa obra, como ela trata só de sentimentos, e o filme mostra isso muito bem, mas não o desenvolvimento lento, gradual, reflexivo, isso seria impossível).
Esse desenvolvimento trabalhado é que faz com o que os personagens sejam verossímeis, mas ainda assim, por que o Mr. Darcy é ainda tido como o homem ideal? Homens ideais não são verossímeis. Fiquei pensando sobre isso e percebi que o que torna o Mr. Darcy tão especial não é o grande amor incondicional que ele sente por Elizabeth - não, Austen não é escritora de romances insípidos. O amor dele não necessariamente é incondicional e cego, é muito bem fundado e desenvolvido, e coerente. Mas por que é coerente? Pelo que de fato torna Mr. Darcy especial: a sua humildade.
E, ironicamente, acho que esse é o principal tema de um romance intitulado "Orgulho e Preconceito": a verdadeira humildade, e logo, a verdade, porque é só pela humildade que se alcança a verdade.
Mr. Darcy, depois de levar uma descompostura de Elizabeth, fica com raiva e ainda mais orgulhoso num primeiro momento, como é natural, mas quando passa a raiva e começa a refletir sobre o que ela disse, começa a perceber como ela estava certa e como seu caráter era cheio de faltas. Esse conhecimento de si, que só é alcançável através da humildade de ouvir a repreensão e admitir sua verdade, orientado por um bom coração leva à reforma da personalidade e conduta. Elizabeth, depois de ler a carta arrogante de Mr. Darcy, percebe como foi levada por orgulho ferido num primeiro contato a se ferrar a um preconceito em vez de se abrir ao conhecimento. Mesmo com toda a arrogância da carta, e da forma de sua entrega, ela reflete sobre si mesma e começa a enxergar coisas que não enxergava antes, não apenas sobre si e Mr. Darcy, mas também sobre sua família.
Lydia, uma menina cheia de espírito que se acha acima da vida tediosa do campo e acima de todos os demais, sem ter consideração com ninguém, por sua cegueira cai nas mãos de um predador. Lady Catherine, presa a seu orgulho de classe, toma por real o teatro da ritualizada sociedade inglesa oitocentista, e na tentativa de separar Elizabeth do sobrinho acaba proporcionando a oportunidade do pedido de casamento. Mr. Bennet só encontra no cinismo o modo de suportar a tolice da esposa e das três filhas mais novas, e por não se aplicar a educá-las quase tem a família arruinada pela fuga de Lydia.
A verdadeira humildade é, no entanto, diferente da falta de autoconfiança que atrasa tanto o casamento de Jane e Mr. Bingley, e faz com que algumas pessoas confundam a timidez de Georgiana com orgulho (e a timidez de Mr. Darcy também, ele sempre foi muito tímido, o que, sendo inconcebível para um homem na época, era ainda mais facilmente mal interpretado do que sua irmã). Humildade não é se achar inferior ou indigno de nota, mas ter clareza de como você é na relação com as pessoas, porque afinal, somos todos muito falhos! Se conhecendo melhor Elizabeth enfrenta Lady Catherine com dignidade e Mr. Darcy tenta reparar os pontos em que errou. Foi só depois que cada um revisa si mesmo que começam a conhecer realmente e a gostar realmente um do outro, pois se entendem melhor.
Talvez o contrário de orgulho e preconceito não seja modéstia e esclarecimento, mas humildade - e assim, verdade.