spoiler visualizarAnna 07/11/2022
Não sei se entendi, mas vamos lá?
Divórcio, do escritor Ricardo Lísias, é um romance voraz, cru e conflitante. Lísias, agora personagem, descobre ao acaso o diário de sua até então esposa e se depara com diversas confissões sobre sua profissão e a frustração com seu casamento: ?Casei com um homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda?. Diante dessa declaração, o personagem se vê ?sem pele? e passa os dias seguintes tentando sobreviver com a falta de ar e com seu corpo em carne viva.
Admito que inicialmente eu cogitei que o fato de Ricardo dizer estar morto e não possuir mais pele em toda a extensão de seu corpo não se tratava de uma metáfora, mas sim, da realidade do personagem. Levei um tempo até entender que se tratava da dor do personagem e das fases enfrentadas por ele pós-divórcio. O livro descreve o desmoronamento emocional enfrentado por Ricardo após o fim do relacionamento, envolvendo um embate judicial e críticas ao meio jornalístico. Ricardo é um personagem aparentemente fechado e metódico. Um escritor de trinta e cinco anos que acorda todos os dias no mesmo horário para escrever e adorou uma maneira reservada de se viver, gastando sua renda de professor universitário com viagens e livros. Do outro lado temos sua ex-mulher cujo nome não é revelado, uma jornalista de cultura ambiciosas e com altas perspectivas sobre o futuro (isso sob a narração questionável de Ricardo). Após encontrar um diário dentro de uma gaveta, Ricardo se vê diante de diversas declarações que contam a frustração de sua esposa com o casamento, sendo a maioria absolutamente pejorativas a ele. Desde então, Ricardo passa a viver sob a sombra do luto do fim do casamento e vivenciando as sensações provocadas por um recém-trauma como falta de ar e o corpo descoberto de pele queimando ao entrar em contato com os elementos seu redor. Divórcio apresenta de maneira cru e fria todas as faces e trejeitos de uma pessoa que inegavelmente está sofrendo. Ele reflete todas as sensações e pensamentos, por mais mesquinhos e repulsivos, de uma alma que está perturbada pela dor. A dor pode ser feia às vezes, pode mostrar o pior de nós, como dito pelo próprio personagem: ?As pessoas, sem nenhuma exceção, carregam um "lado negro" [..] que fica guardado em algum canto. A vida é uma enorme luta para contê-lo. Quanto mais perto nossas atitudes chegam de suas fronteiras, mais fácil fica para que esse lugar obscuro invada toda a personalidade? (p. 67). Ricardo toma uma diversidade de atitudes questionáveis como enviar emails raivosos para a ex-mulher e para o advogado da separação, além de se passar por um advogado próprio e a fazer desembolsar duzentos mil reais como indenização (ato esse que é acusado de chantagem por ela), revelando que o personagem passa pelas fases iniciais de uma pessoa que está vivendo o fim de um relacionamento: negação, raiva, negociação e tristeza. A dor de Ricardo o deixa vulnerável, exposto, sem pele. Vemos o pior de Ricardo: sua aparente depressão, toda a dor que atravessa as paredes da realidade e passa a confundir o leitor. A dor de Ricardo se solidifica. Ele está morto? Alguém de fato se sente vivo quando sofre?
A depressão de Ricardo é evidente em diversos trechos e passagens do livro: O excesso de sono e de tempo embaixo do chuveiro, a dificuldade em conseguir se levantar da cama (?Por duas vezes, não tive ânimo para ir ao banheiro e urinei ali mesmo? (p. 24)), à falta de higiene básica e organização pessoal (ligações e mensagens ignoradas, caixas de comida espalhadas pelo chão, roupas jogadas e até mesmo fezes em cima do lençol). Ricardo é um personagem que tem toda sua vulnerabilidade exposta de maneira crua e direta, revelando todas as nuances de seu sofrimento e a forma que isso o afetou e o impediu de viver a própria vida.
Em determinados momentos achei o livro maçante e muito repetitivo, o que tornou a leitura um tanto cansativa. No entanto, acredito que essa ?lentidão? na narrativa seja altamente proposital, tal como o embaralhamento sentimental do personagem e as confusas passagens de tempo expressas por ele. Em um contexto diferente em que eu estivesse vivenciando o luto do fim de um relacionamento ou experienciando sentimentos e sensações semelhantes à um, eu seria capaz de absorver e compreender toda a narrativa de Ricardo e toda sua jornada de superação e recuperação. Entretanto, também comecei a perceber que talvez (e muito provavelmente), a narrativa poderia não se tratar apenas sobre um fim de relacionamento. Divórcio possui o tipo de narrativa que dá a entender que o autor precisava escrever cada uma das palavras, como um escrito de desespero: expositor, visceral e quase sufocante. A ex-mulher de Ricardo não é uma vilã. Uma mulher genial e ambiciosa, que não se contenta com pouco. Para ela, Ricardo não é muito nem pouco, ele é mínimo. As vezes ele basta, as vezes não. Uma mulher que cometeu o típico erro de achar que se contentar com o parceiro seria o suficiente pra manter uma relação. Entretanto, visto que não pude acessar o ponto de vista dela, tive a singela impressão dada a perspectiva de Ricardo de se tratar de uma pessoa que necessita ter sua imagem cultivada e/ou se relacionar com enalteça de alguma forma. Ricardo a todo tempo critica a ex-esposa com base ao ambiente profissional em que ela está inserida, criticando o meio jornalístico e toda a hipocrisia contida nele. E ainda sim, diante de todos os comentários difamatórios contidos em seu diário, é com uma única frase que retumba dentro de Lísias e o faz desmoronar: ?Casei com um homem que não viveu. O Ricardo ficou trancado dentro de um quarto lendo a vida toda?. É importante ressaltar que o diário também expõe o adultério da ex-mulher em uma viagem a trabalho.
Embora a traição seja citada diversas vezes pelo personagem ao longo da narrativa, eu não senti que o epicentro de sua dor viesse daí. Em determinado ponto do livro, passei a acreditar firmemente que os escritos no diário da ex-mulher de Ricardo não era a real fonte de seu desalento, mas o que aquelas palavras significavam para ele. Em determinado ponto do livro, passei a acreditar firmemente que os escritos no diário da ex-mulher de Ricardo não era a real fonte de seu desalento, mas o que aquelas palavras significavam para ele. Talvez o maior sofrimento de Ricardo não tenha sido a descoberta do diário, a traição ou o fim do relacionamento, mas ser chamado de medíocre. E, pior ainda, reconhecersse assim. Além disso, o autor em algumas passagens confusas explora os limites do que seria uma ?autoficção? e passa a se confundir com o personagem: ?Vim mesmo parar dentro de um livro meu? (p. 63). Ainda sob essa ótica, montei uma teoria com base nas minhas reflexões sobre livro, visto que parei de me concentrar no fim do casamento e na evolução gradativa de Ricardo enquanto ele percorria diariamente um trajeto correndo na medida em que superava a relação. Para mim, o autor e o personagem, embora alguns trechos indicassem serem a mesma pessoa, incorporavam-se em personas diferentes: o Ricardo Lísias autor e o Ricardo Lísias personagem. Em alguns pontos, as barreiras entre o realismo e a ficção na obra se tornaram tênues. Ricardo (personagem) é quem experiencia a situação de término, enquanto que o Ricardo (autor) vive as experiências do outro e escreve sobre a dor, a tristeza, a solidão e todas as sensações confusas e diversas do personagem. E então, Ricardo (autor) atravessa as barreiras da ficção, tornando-se o personagem. Nessa teoria, Ricardo teria usado de um relacionamento fictício para revelar nuances de si mesmo, sendo o personagem escritor e marido traído enquanto ex-mulher ambiciosa e insatisfeita. Assim, o autor (teoricamente) julga a si mesmo ao tempo em que vivência a dor de julgamento e se reconhecer assim. É nesse ponto que saímos da autoficção e passamos a falar de autocrítica.
O Divórcio de Lísias é um livro que carrega uma confusão narrativa proposital do autor, ao mesmo tempo que aparenta ser um livro fruto de desespero, uma obra que necessitava ser escrita. O rancor e o desejo de vingança percorre diversos trechos, sendo carregado de raiva e injustiças. Assim é a dor: às vezes feia, incoerente e injusta. Outras vezes, vulnerável, solidária, cruel e estranha. No entanto, infinita e irrevogavelmente material para a literatura.