Antonio Luiz 02/09/2013
Um grande equívoco
Considero este livro um grande equívoco por parte de um jurista respeitável. Apesar de citar Karl Marx e Fernand Braudel, parte do princípio de que o capitalismo é uma “civilização”, o que já é um mau começo e tenta fazer contra ele uma espécie de julgamento histórico, para concluir por sua condenação à substituição por uma hipotética “civilização humanista”. Outro contrassenso, pois o humanismo não só também não é uma civilização no sentido essencialista e quase spengleriano que Comparato dá ao termo, como é a outra face da mesma realidade que ele chama de “civilização capitalista”. Surgiu ao mesmo tempo, durante a Baixa Idade Média: capitalismo e humanismo não são “civilizações” rivais nem etapas de um processo. São verso e reverso das mesmas tendências liberais e individualistas da cultura ocidental e de sua idealização da livre iniciativa, da criatividade e do individualismo.
Agregados a esse mal-entendido básico, vêm vários outros. O mais perigoso e complicado é a ideia de que antes da “civilização capitalista” existiu no Ocidente, desde os primórdios, uma “civilização indo-europeia” humana e harmoniosa. Inexplicavelmente para um homem culto nascido em 1936, Comparato sustenta que “poucos estudiosos sustentavam a existência de uma estirpe de civilizações indo-europeias” antes da segunda metade do século XX. Isso é totalmente falso: o século XIX e a primeira metade do XX foram marcados pela obsessão do conservadorismo racista europeu por uma mítica “civilização indo-europeia” ou, como era mais comum se dizer na época, “civilização ariana” que teria dado origem a todas as demais.
Comparato não dá à sua visão um caráter racial, mas sua visão essencialista da cultura é quase igualmente perigosa. Uma civilização indo-europeia propriamente dita jamais existiu. Existiram várias civilizações que usaram línguas indo-europeias e retiveram alguns resquícios de uma hipotética cultura proto-indo-europeia primitiva (anterior ao que costumamos chamar de civilização), mas seus atributos propriamente “civilizados” – construção de cidades, escrita, pesos, medidas, aritmética, leis, religião – surgiram na maior parte de culturas com outras raízes linguísticas: sumérios, elamitas, egípcios, semitas do Oriente Médio e drávidas do Vale do Indo, principalmente.
Todas as culturas avançadas de línguas indo-europeias foram híbridas e não têm, enquanto civilizações, uma origem comum dentro do universo “indo-europeu”, suas raízes vieram de fora. Comparato se equivoca totalmente ao supor que os míticos arianos são a origem da “civilização” em geral, ideia desacreditada por pesquisadores sérios no início do século XX. Para respaldar essa ideia obsoleta, recorre a fontes igualmente obsoletas: apoia grande parte de sua visão da origem da civilização greco-romana em Fustel de Coulanges (1830-1889), historiador do século XIX cuja visão esquemática e dogmática, alheia às condições reais, tem sido criticada e factualmente refutada há mais de um século.
A ideia de que essa imaginária “civilização indo-europeia” sempre foi caracterizada por uma relação equilibrada e harmoniosa entre sacerdotes, guerreiros e produtores também não resiste ao exame mais superficial. Essa ideologia pode ter existido na hipotética cultura proto-indo-europeia e uma versão muito modificada sobreviveu no hinduísmo, mas dela nada restava de significativo na Grécia e Roma clássicas, onde estão as raízes mais importantes da cultura e do direito ocidentais.
Para gregos e romanos, todos os cidadãos eram guerreiros em potencial e o sacerdócio era um cargo público, não um estamento à parte. E como sabe qualquer curioso pela história antiga, essas sociedades foram marcadas por conflitos sociais violentos entre eupátridas e camponeses, patrícios e plebeus, cidadãos e escravos e assim por diante, que resultaram em numerosas reformas políticas, revoltas e revoluções. A ideologia da divisão entre sacerdotes, guerreiros e produtores foi reinventada na Idade Média, mas como resposta aos conflitos e condições da época, não como continuação de uma mítica civilização primordial.
Por fim, o livro de Comparato está pontilhado por erros factuais, alguns deles muito graves. À página 263, afirma que a crise chilena de 1982 precipitou a “queda, e em seguida a fuga” do ditador Augusto Pinochet, o que é um completo absurdo. Pinochet conduziu uma transição “lenta, segura e gradual” e jamais fugiu do Chile: foi senador vitalício gozando de plena imunidade até 2002, quando renunciou ao cargo para poder alegar incapacidade mental ao ser processado no Reino Unido. Morreu rico e inimputável, em 2006.
Na página 275, outro erro do mesmo porte: afirma que “a concentração de dióxido de carbono na atmosfera é a grande causa da destruição da camada de ozônio na estratosfera”. Como sabe qualquer leigo interessado em meio ambiente, são dois problemas totalmente distintos, com causas diferentes e independentes - o segundo deles, aliás, relativamente controlado nos dias de hoje, enquanto o primeiro se agrava continuamente.
O livro se encerra com uma proposta meio cômica de criação de uma federação mundial humanista e “organização dos poderes públicos na futura sociedade política mundial”. Nada contra as utopias, mas esta é singularmente pobre. Que importa especular hoje sobre qual o número de parlamentares que teria uma Assembleia ou um Senado mundial, ou qual a duração de seu mandato? Seria realmente esta a questão mais interessante ou relevante no processo de criação de um Estado Mundial? Se o capitalismo é uma “civilização”, como alega o autor, não seria prioritário questionar as próprias raízes do que conhecemos como civilização, a partir dos conceitos de propriedade, representação, Estado, direito, separação de poderes e assim por diante? Todo o livro soa, francamente, como especulação de um diletante pretensioso e não como uma contribuição intelectual séria de um jurista que teve um importante papel histórico na redemocratização brasileira.