Cristo e o Tempo

Cristo e o Tempo Oscar Cullmann




Resenhas - Cristo e o Tempo


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William 17/06/2014

Cristo e o Tempo
1 CONTEXTO HISTÓRICO, ESTRUTURA E PREFÁCIOS NO INÍCIO DO LIVRO

Na dedicatória, Cullmann oferece seu trabalho à Universidade de Lausane, especialmente à Faculdade de Teologia, como reconhecimento pelo grau de Doutor Honoris Causa. O livro está dividido em quatro partes: 1) A Continuidade da Linha da Salvação; 2) O Caráter Temporalmente Único das Diferentes Épocas da Salvação; 3) A História da Salvação e a História Universal; e 4) A História da Salvação e o Indivíduo. Abaixo de cada título das quatro partes ele colocou uma palavra chave em grego que abre o conteúdo ao leitor.
Há um longo prefácio no início do livro. O Dr. Ricardo Quadros Gouvêa escreveu nada menos do que 22 páginas de PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA. Segue-se os prefácios originais de duas edições do livro, escritas pelo próprio Cullmann.
Gouvêa destaca que Cullmann nasceu em Estrasburgo. Esta cidade possui uma cultura galicana. Hoje pertence ao território francês, embora já tenha pertencido à Alemanha. Especialmente nas duas grandes guerras o seu território pertenceu, por curto tempo, à Alemanha. Cullmann provém de uma família luterana. Gostava de ler Schleiermacher e depois Schweitzer, entretanto, com este segundo autor ele se desencantou com a teologia liberal. Após seus estudos teológicos, em 1938 assumiu a cátedra de Novo Testamento na Universidade da Basileia onde relacionava-se diariamente com Karl Barth. Neste relacionamento, Cullmann se aproximou do reformador Lutero. Cullmann foi um grande estudioso das escrituras, sempre foi curioso pelos problemas da Igreja Primitiva e apaixonado pela causa ecumênica.
Cullmann possui um período de polêmicas com Bultmann, mas Gouvêa ressalta que a fama nunca foi igual. Por isso, embora Cullmann seja muito importante, ele não é muito conhecido. Gouvêa ressalta que apenas se pode entender Cullmann ao lembrar-se da teologia de Bultmann (ou dos seus discípulos). A leitura do Cullmann auxilia na interpretação de Bultmann e também o contrário. Bultmann e Cullmann tratam das mesmas questões e estão no mesmo contexto histórico-sócio-cultural. Ambos procuram dar respostas às mesmas ansiedades dos cristãos da sua época, mesmo que o caminho da solução seja diferente aos dois. Cullmann procurou cavar a fim de achar a verdadeira e original fé cristã neotestamentária, encoberta por uma montanha de acréscimos e falsificações. Na busca desta fé cristã original, os pressupostos extra bíblicos são deixados de lado, especialmente a filosofia. Aliás, Gouvêa afirma que Cullmann evitou cair na armadilha de simplesmente trocar a metafísica platônica pela nova metafísica existencial de Heidegger. Cullmann, pelo contrário, levou todos os seus pensamentos como cativos do Cristo das escrituras: fundamento e autoridade da fé cristã.
Cullmann teve participação ativa no Concílio Vaticano II. Escreveu um livro intitulado “Católicos e Protestantes: uma proposta para uma efetiva solidariedade Cristã” em 1968. Nos anos 60 Cullmann teve polêmicas contra Barth onde ele escreve “A doutrina do Batismo no Novo Testamento: Batismo de adultos e de crianças” em 1948. Além dessas obras, escreveu ainda “Oração no Novo Testamento”, “A formação do Novo Testamento” e “Cristologia do Novo Testamento”. Cullmann faleceu em 1999 com 97 anos de idade. O teólogo de Estrasburgo desenvolveu, a partir de uma sólida Teologia Bíblica, a questão dos ofícios de Cristo, da sua autoconsciência messiânica, sua pré-existência trinitária do Logos, a esperança messiânica futura (escatologia). Escreve também o livro “Salvação como História” onde aborda a História da Salvação sem perder o existencialismo. Em 1946 ele escreveu “Cristo e o tempo” que é considerada a sua obra máxima.
Em Cristo e o Tempo, Cullmann traz uma concepção neotestamentária de tempo e história. Ele voltou para a temporalidade, enfim, à historicidade: sociedade, política, corpo e planeta. Para ele, a história humana na sua totalidade é somente compreendida a partir do evento de Cristo. É nele que os demais eventos históricos recebem sentido. Por isso a eternidade não se opõe à temporalidade. A definir isto, Cullmann promove o rompimento com o dualismo platônico. A salvação correta não é a salvação do tempo, mas salvação no tempo. Cullmann prefere manter a tensão dialética entre o secular e o sagrado. Cristo e o tempo responde a Bultmann e a sua teologia existencialista que se fundamentou na obra de Heidegger.
Gouvêa lembra o “problema” identificado por Cullmann: somente a fé cristã tem uma concepção linear da história em oposição às outras religiões. Neste sentido, a História da Salvação (Heilsgeschichte) é paralela à história propriamente dita. Muitas vezes Cullmann foi tido como universalista. Gouvêa diz que estes críticos são muito conservadores e nos seus preconceitos racionalistas caem na crítica vazia. No fim, o que Cullmann quis foi questionar a soteriologia individualista característica do neopuritanismo pragmático. Cullmann, em síntese, não está preocupado com a contextualização da mensagem neotestamentária, mas sim com a essência da mensagem cristã. Cullmann é um verdadeiro biblicista ao olhar o texto como um texto inserido em um contexto histórico-cultural.
No PREFÁCIO À PRIMEIRA EDICAÇÃO e no PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO (para não repetir) Cullmann afirma que o seu livro não resolve tudo. Para ele, o tempo é a apresentação histórico-bíblica da salvação. Por conseguinte, Cullmann parte da concepção bíblica de tempo.
Há ainda um artigo intitulado “A INFLUÊNCIA DE “CRISTO E O TEMPO” NA TEOLOGIA DO PÓS-GUERRA: EXAME RETROSPECTIVO” à guisa do prefácio da segunda edição. Cullmann lembra o contexto do lançamento da primeira edição do seu livro: escatologia consequente de Schweitzer e a demitologicação de Bultmann. Neste contexto é que Cullmann lembra a tensão dialética existente entre o “já cumprido” e o “ainda não”, isto é, presente e futuro. Tanto para Schweitzer como para Bultmann a História da Salvação não é o elemento primitivo e essencial da mensagem neotestamentária. Schweitzer e Bultmann colocam a História da Salvação apenas na parusia não realizada onde o centro se encontra na escatologia. Além do mais, Cristo e o Tempo foi escrito nos anos de guerra onde a teologia suíça estava preocupada com os caminhos da teologia liberal. A Teologia Liberal, especialmente Schweitzer e Bultmann, colocou Cristo como o fim da história e não como o centro da história. Cullmann ressalta que desde a primeira edição do seu livro destacou sua preocupação coma a visão neotestamentária de uma História da Salvação. Houve quem afirmou que em Cullmann há algum “sabor de pietismo”. Cullmann não pretende abordar o “tempo linear”, mas o seu trabalho enfoca dialética judaico-cristã do “já agora” e “ainda não”. Inclusive, afastou a questão das duas naturezas de Cristo estabelecidas no Concílio de Calcedônia em 451. Este artigo foi escrito no verão de 1962.

2 O LIVRO

Na introdução, Cullmann destaca o problema que o levou a escrever o livro: a contagem de tempo cristã não parte de um ponto inicial, mas de um ponto central: o nascimento de Jesus Cristo. Isto acontece de tal maneira que os cristãos colocam os anos judaicos em ordem decrescente até Cristo e os anos cristãos em ordem crescente a partir de Cristo. Cullmann identifica que isto está centrado na concepção que os primeiros cristãos tinham do tempo e da história. Este é o foco de sua pesquisa: tempo e história no cristianismo primitivo. Existem alguns tópicos abordados dentro da introdução. O primeiro é “história bíblica” e história. A aparição de Cristo muda a história. É a partir da centralidade de Cristo que a história na sua totalidade deve ser compreendida e julgada. A obra de Cristo em primeiríssimo lugar forma o centro de vários acontecimentos particulares que se desenrolaram sobre a linha do tempo e que, aos olhos dos primeiros cristãos, esta é a história bíblica. Esta história particular, em segundo lugar, se torna a medida da história geral (profana). A história bíblica é a norma. Neste sentido, há história bíblica é a mesma que a História da Salvação. O segundo tópico da introdução é a “história bíblica” e a teologia. Cullmann afirma que os primeiros cristãos também colocaram Cristo como o centro do tempo. Entre Gênesis e Apocalipse está o Cristo. A palavra, o Λογος é Deus no ato da sua revelação: Deus entrou uma só vez na história. Em 1 Co 8.6 é dito que Cristo é o mediador de tudo, tanto da ordem cósmica como na ordem histórica. A História da Salvação está no coração de todo o Novo Testamento. Muitos podem amar aos seus próximos sem serem cristãos, contudo, na História da Salvação o mandamento do amor ao próximo recebe o seu significado peculiar por causa da obra de Cristo na cruz. A história não é um mito. Para Cullmann, Schweitzer violenta a história ao focar na escatologia. Já Bultmann deixa a mensagem cristã nua sem a História da Salvação. Portanto, o cerne da pregação cristã deve estar na concepção cristã de tempo e da história. Em primeiro lugar, a salvação está conectada a uma linha contínua de eventos temporais que abrangem o passado, o presente e o futuro sendo ascendente. Em segundo lugar, há o fato histórico único e central: morte e ressurreição de Jesus Cristo. Toda a história é periférica deste centro.

2.1 PRIMEIRA PARTE – A CONTINUIDADE DA LINHA DA SALVAÇÃO (Οικονομία)

A terminologia usada no Novo Testamento para o tempo é diversa. No Novo Testamento, o céu é a realidade invisível enquanto a terra é a realidade visível. καιρός no sentido secular significa tempo oportuno. No sentido cristão, porém, significa a realização do plano divino da salvação que acontece no tempo de Deus. Tanto no passado, como no presente e no futuro existe o καιρός divinos distintos uns dos outros. A reunião das diversas passagens do καιρός neotestamentário, em reunião, forma a linha da salvação. αιών é o inverso: o tempo limitado. No Novo Testamento não são o tempo e a eternidade que se opõem, mas o tempo limitado e o tempo ilimitado. A temporalidade não foi criada pelo pecado original, embora a queda submeteu ao poder do mal a história que realiza o αιών, enquanto que o futuro é caracterizado pela vitória obtida sobre os poderes maléficos. αιών no judaísmo é a divisão do tempo estabelecida por Deus. αιών não é o oposto da eternidade, mas há uma diferença temporal entre o αιών presente e o αιών futuro. Em síntese, não há como compreender a concepção de tempo no cristianismo primitivo se não nos despirmos de toda filosofia. Portanto, o esquema neotestamentário do tempo é como uma linha reta infinita que forma a estrutura neotestamentária da salvação. Nessa linha reta e ininterrupta dos αιών que se situam os καιρός de Deus. Outro termo é χρόνος. Nele encontramos uma relação concreta com a História da Salvação, em um sentido próximo de καιρός e αιών. Em síntese, a terminologia aponta para Deus como Senhor de todo e qualquer concepção de tempo. O tempo não é um problema para Deus, nem mesmo o tempo humano. Deus está acima do tempo e se revelou no tempo: Hb 13.8: Ἰησοῦς Χριστὸς ἐχθὲς καὶ σήμερον ὁ αὐτὸς καὶ εἰς τοὺς αἰῶνας. (BGT).
A seguir, Cullmann aborda a concepção bíblico-linear e a ideia cíclico-helenística do tempo. Para os primeiros cristãos, o tempo não é uma realidade contrária a Deus, mas é o meio que Deus se serve para revelar aos seres humanos a sua graça. O helenismo possui a concepção cíclica do tempo. Já o mundo judaico-cristão conhece uma linha reta e ascendente do tempo. O mundo helênico não pode conceber que a libertação pudesse resultar de um ato divino consumado na história temporal. Para eles, a libertação somente é passar dessa existência para o mundo superior: sair do ciclo temporal para o além onde o tempo não existe. O pensamento bíblico, a Heilsgeschichte (História da Salvação) e o tempo são destinados a se encontrarem. Historicamente, o docetismo rejeitou completamente o fato histórico da encarnação de Cristo, pois para os ditos cujos, Jesus Cristo apenas aparentava ser Deus, sendo, na total realidade, apenas humano. Logo, o mundo helênico entra em choque com o mundo judaico-cristão: suas concepções de tempo são opostas e divergentes.
Tempo e eternidade, portanto, no pensamento formulado por Platão, representam uma total diferença qualitativa: são exaustivamente distantes um do outro. Para Platão a eternidade não é o tempo prologado ao infinito, mas eternidade é a ausência de tempo. O tempo é uma imagem da eternidade. Essa visão não era concebida pelos primeiros cristãos. Entretanto, o pensamento moderno aceita com muita facilidade a ideia platônica do tempo. Para o mundo judaico-cristão a relação entre tempo e eternidade está vinculada à revelação. Logo, o caráter temporal é comum tanto ao tempo como à eternidade. Por isso, para que seja possível compreender o tempo na concepção neotestamentária e da Igreja Primitiva precisa-se despir-se o máximo possível da filosofia. A concepção bíblica não aborda a eternidade como a ausência de tempo, mas como tempo futuro que não é oposto ao tempo presente. Para Cullmann, Karl Barth faz da escatologia o lugar “pós-temporal” onde não há mais tempo (i. é., Platão). O novo tempo (αιών) não inicia somente na escatologia, ao contrário, tudo o que se diz anteriormente sobre ele já se situa nele. O tempo futuro caminha com o tempo presente pela obra da pessoa de Jesus Cristo na cruz.
Deus está acima do tempo e é soberano sobre o tempo. A única diferença entre eternidade e tempo é que a eternidade é ilimitada. A eternidade é vista, portanto, como uma linha temporal infinita. O Sl 90.4 expressa muito bem que Deus não está fora do tempo, mas o tempo de Deus é infinito. Deus apenas possui outras medidas para o tempo que não são as mesmas que as nossas. Inclusive a predestinação está inserida neste assunto. Na História da Salvação, onde Jesus Cristo se apresenta o futuro já está determinado. Nele, o futuro está cumprido: só resta esperar. A soberania que Deus tem sobre o tempo se manifesta, de um lado, na predestinação e na pré-existência e por outro, na história mesma e própria de Cristo. Neste caso, o Espírito Santo não é outra coisa senão uma antecipação do fim no presente. Mesmo que a linha da salvação seja total, isso não anula a sua unicidade no seu desenvolvimento temporal. O crente está no presente onde participa nos dons futuros da graça. Portanto, tempo e eternidade deve serem vistos no seu conjunto. Apenas Deus reina sobre o tempo e somente ele pode captá-lo na totalidade de sua compreensão com padrões totalmente diferentes dos humanos.
O ser humano, contudo, dividiu o tempo. A linha do tempo como encontrada na Bíblia se divide em três partes: o tempo anterior à criação, o tempo entre a criação e à parusia e o tempo posterior à parusia. No centro do tempo está Jesus Cristo: a aparição de Jesus Cristo. Os judeus colocavam o seu centro no futuro. Os cristãos, porém, colocam o centro no passado: o fato histórico de Cristo Jesus. A partir de Cristo Jesus o tempo recebe nova divisão e novo centro. Todavia, a esperança permanece no futuro, mas com o centro em Jesus Cristo. Schweitzer e Bultmann, por isso, possuem uma concepção do Novo Testamento falsa ao colocarem o centro na escatologia e não na cristologia. Fé cristã é fé no passado. Esperança cristã é esperança no futuro por causa do evento central passado: morte e ressurreição de Jesus Cristo. “A esperança da vitória final é igualmente tão mais intensa à medida em que ela está sobre a convicção inabalável de que a vitória decisiva já foi alcançada”. Em Cristo está manifesta a soberania de Deus sobre o tempo: Deus entrou no tempo limitado. Em Cristo há uma antecipação do fim e antes da sua encarnação a sua pré-existência. Bultmann não compreendeu isso e colocou para o tempo um sentido metafísico. Em Cristo, o calendário humano não é anulado. Não há como ver a nova divisão do tempo na centralidade de Cristo sem a fé. Somente pela fé a divisão do tempo com o centro em Cristo pode ser vista.
Tendo em vista a realidade central da História da Salvação que pode ser compreendida pela fé somente, aborda-se o tema história e mito. Para os primeiros cristãos toda distinção entre história e mito lhes é estranha. Bultmann irá falar da demitologização. Isto faz com que as partes históricas sejam distintas. O mito é tido como algo fora do tempo. Contudo, Cullmann reconhece que Bultmann compreendeu que não se poderia limitar a História da Salvação àquelas partes controláveis pela ciência história. Entretanto, Cullmann alerta que isso não significa que esteja de acordo com ele. A História da Salvação é, na sua totalidade, uma profecia. A História da Salvação é, na sua totalidade, um mito. Para Cullmann, a história das origens e do fim do mundo não é jamais considerada fora do centro temporal. O fato principal: reconhecer que a fé, no sentido neotestamentário faz remontar a encarnação histórica para além da era da preparação propriamente dita até às origens e, em outra direção, a prolonga para além da era do desenvolvimento da igreja até à história das últimas coisas.
Portanto, não se pode falar da História da Salvação sem ser Cristocêntrico. Cullmann afirma que por muito tempo teve-se uma concepção errônea de que a História da Salvação se apresentou de repente aos primeiros crentes na sucessão cronológica de seus καιρός e que eles entenderam, passo a passo, como eventos sucessivos. A História da Salvação seria algo revelado aos poucos durante o tempo. Por isso, Cullmann defende que se pode falar com razão de “Cristo e o tempo”. Não é possível falar de Cristo vendo apenas um ponto determinado da linha do tempo como se fosse possível falar de Deus fazendo abstração de Cristo. Isto iria destruir a unidade interior e grandiosa desta linha. A História da Salvação é a história de Cristo, do encarnado. Os evangelhos simplesmente narram a vida de Jesus situando-a na História da Salvação. Da mesma forma a História da Salvação está nas mais antigas confissões de fé (credos) neotestamentários. O pai está em uma relação estreita com o Filho na História da Salvação. Também as outras confissões de fé antigas expressam isso.
A seguir, Cullmann aborda o tema “O duplo movimento da linha da salvação de acordo com o princípio da substituição”. A linha da salvação pressupõe a revelação de Deus e o pecado do ser humano que se revolta contra ela. O pecado possui um começo: a queda. Deus elege uma minoria para a redenção da totalidade, isto é, o princípio da substituição. Deus escolheu o povo de Israel para a salvação do mundo. Este “remanescente” diminui ainda e se reduz a um só homem, o único que pode se encarregar do papel designado ao povo de Israel. Por isso, na totalidade da História da Salvação há claramente dois movimentos: a passagem da pluralidade ao único, que é a Antiga Aliança, e a passagem do Único para a pluralidade, que é a nova aliança.

2.2 SEGUNDA PARTE – O CARÁTER TEMPORALMENTE ÚNICO DAS DIFERENTES ÉPOCAS DA SALVAÇÃO (Εφαπαξ)

Cullmann inicia esta parte falando do caráter temporalmente único do evento central da aparição de Cristo. O termo Εφαπαξ é aplicado, em primeiro lugar, ao ato salvífico-histórico cumprido por Jesus Cristo. O termo significa uma vez: o ato redentor de Jesus Cristo foi cumprido uma só vez na história.
O docetismo foi a grande heresia cristológica da antiguidade. Na realidade, o próprio docetismo é tão velho quanto ao próprio cristianismo. O docetismo não é apenas um sistema herético, mas é uma cristologia herética. No docetismo, não há nada de novo para se falar sobre Jesus Cristo da maneira como ele apareceu na história. O docetismo permanece na simples aparência de Deus ignorando a simultânea divindade do homem Jesus Cristo.
Cullmann aborda o período passado da História da Salvação com a centralidade da aparição de Cristo Jesus. Diz ele que desde a criação até Cristo, a história completa do passado, como é relatada no Antigo Testamento, já faz parte da História da Salvação. O Antigo Testamento é a preparação temporal do evento da aparição de Cristo. No Antigo Testamento, toda a História da Salvação tende para a encarnação. O evento central da aparição de Cristo é esclarecido por meio da sua preparação véterotestamentária. Após isso, aborda-se o período futuro da História da Salvação com a centralidade da aparição de Cristo Jesus. Cullmann diz ser falso afirmar que o cristianismo primitivo se posicionou a partir de um ponto de vista escatológico. A centralidade era a aparição de Cristo. Agora Cullmann traz o período presente da História da Salvação com a centralidade da aparição de Cristo Jesus. Cullmann cita Kierkegaard. Para este, a fé coloca o cristão no tempo da encarnação e torna o cristão contemporâneo dos apóstolos. Cullmann avalia que nisto há uma suspensão do tempo, especialmente do tempo da salvação, pois Jesus verdadeiramente considerou sua morte como o momento decisivo da História da Salvação. A confissão presente no hino cristológico em Fp 2.5-6 culmina no “Senhor Jesus Cristo”. A Igreja está no tempo presente da História da Salvação. Por isso, ela participa de uma tensão que existe entre o centro e o fim. A Igreja e o reino de Deus estão ligados temporalmente. A Igreja é o centro terrestre onde toda a soberania de Cristo Jesus se torna visível. Ela é o corpo de Cristo, o corpo do crucificado, mas também do ressuscitado. No pentecostes, a fundação da Igreja se tornou visível a partir da ação do πνευμα. A tarefa essencial que incumbe a Igreja cumprir no seu tempo, o futuro missionário da pregação do evangelho, é considerado como um sinal precursor do fim do mundo. A Igreja possui, portanto, um duplo caráter: o dom da salvação ofertado por Deus ao mundo e os pecadores que a integram e que precisam do dom da salvação. O fim não irá chegar até que todos tenham se convertido. A data do fim não é o importante, mas o que realmente importa é saber o que se deve cumprir até a chegada de tal momento. Se Kierkegaard transpõe, por assim dizer, por um salto para trás o tempo que separa a época presente do evento central, a aparição de Cristo, o catolicismo, inversamente, transpõe, por um salto para frente o tempo que separa a aparição de Cristo da época atual. Cullmann afirma ainda que inclusive as Escrituras deve ser vista a partir do elemento central da aparição de Cristo. A Igreja está edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas (Ef 2.20), por isso, o testemunho da centralidade destes deve ser o testemunho da Igreja.

2.3 TERCEIRA PARTE – A HISTÓRIA DA SALVAÇÃO E A HISTÓRIA UNIVERSAL (Δι ου τα παντα)

Nesta parte, Cullmann aborda especificamente a História da Salvação e o universalismo cristão. Para o autor, 1 Co 8.6 é a mais antiga confissão de fé. O universalismo do cristianismo primitivo está ligado a noção, já citada, da substituição. Todo dualismo existente entre criação e redenção está excluído. Todas as coisas são de Deus e para Deus. Tudo existe por intermédio de Jesus Cristo. Por ocasião da criação tudo é criado por intermédio do Filho. Por ocasião da morte e ressurreição de Cristo, tudo é reconciliado por ele. Por ocasião do cumprimento escatológico, tudo será submetido a Deus, que é tudo em todos. Em At 17.22ss vê-se que somente os gentios permanecem indiretamente submetidos à História da Salvação, se eles reagiram de maneira negativa diante da revelação que lhes é concedida, mas, submetidos, pois é também pelo pecado deles que Cristo morreu. Não são as relações entre revelação cristã e uma “revelação natural” independente de Cristo que interessava aos autores do Novo Testamento, mas, antes, a importância que se pode conceder aos gentios à luz dos eventos da salvação. A história universal parte da mesma linha que a História da Salvação: ambas se encontram em seguida. Cristo já reina sobre todas as coisas: isto pode ser visto pela fé somente. Na pregação desta realidade, que é discernida pela fé, a Igreja cumpre o que lhe compete: conduzir o desenvolvimento até o dia em que a soberania de Cristo, atualmente invisível, se tornará visível para todos.
A seguir, Cullmann aborda o tema “a Soberania Universal de Cristo e a História da Salvação”. A partir de Mt 28.18 e Fp 2.10, Cullmann afirma que Cristo, após a sua ressurreição, é o cabeça da Igreja e, ao mesmo tempo, o de todos os seres visíveis e invisíveis. Na imagem ao lado, o círculo interior se encontra mais perto de Cristo que o círculo exterior; e, contudo, Cristo forma o centro comum. O domínio interior é formado por pecadores mas esses homens creem na redenção em Cristo Jesus, e, nessa fé, eles sabem que Ele reina sobre eles como sobre o mundo inteiro. Logo, a Igreja deve se interessar por tudo o que se passa no mundo fora das suas próprias paredes.
Cullmann fala também da submissão dos poderes invisíveis e sua relação a partir do seu vínculo com a História da Salvação, com a história universal. Ele aborda aqui o tema estado, história e salvação. O autor lembra o credo Niceno-Constantinopolitano: Deus também criou as coisas invisíveis. Em Fp 2.10 é atestado que ao nome de Jesus Cristo todo joelho deve se dobrar além da geografia terrestre, tanto no céu como debaixo da terra. O poder terrestre (palpável) do Estado está igualmente submetido aos poderes da soberania de Cristo conferida a ele pelo Pai. O estado, portanto, também possui seu fundamento cristológico. Também as forças invisíveis estão sob o seu senhorio: Cristo já venceu a todos os demônios. O estado, estando a serviço de Deus, coincide, por conseguinte, com a Igreja na discriminação do bem e do mal. O Estado está submisso ao reino de Cristo. O Estado Romano era um estado fundado sobre o direito. É por isso que a comunidade cristã primitiva não protesta contra ele senão no momento em que o discípulo de Cristo é posto em uma situação no qual lhe é proibido confessar que Jesus Cristo é o único Senhor. Para Cullmann, Brunner reconhece o fundamento cristológico do Estado, mas não se interessou muito pelo assunto. Para Cullmann, o próprio Novo Testamento conhece somente o fato de que o Estado é parte integrante da História da Salvação.
No último capítulo desta parte, Cullmann aborda “a questão da afirmação do mundo ou sua negação à luz da História da Salvação no Novo Testamento”. Diz ele que o crente tem conhecimento de que o mundo no qual vive irá passar, mas o crente sabe também que o mundo é, atualmente, ainda querido por Deus no quadro da História da Salvação e que ele está colocado sob a soberania de Cristo Jesus. Se o crente partir da oposição entre “tempo” e “eternidade”, oposição não encontrada no Novo Testamento, e se levar esta oposição até às últimas consequências, ele chegará a uma renúncia ascética do mundo. Se ocorrer o contrário, admitindo que é impossível renunciar ao mundo e que, por outro lado, a opção pelo mundo se encontra limitada pelo ponto final da linha, pelo qual o crente sabe que a aparência do mundo passará.

2.4 QUARTA PARTE – A HISTÓRIA DA SALVAÇÃO E O INDIVÍDUO (Η ζωή ύμνο κέκρυπται συν τω Χρίστω εν τω Θεω)

Primeiramente, Cullmann aborda o indivíduo e o período passado da História da Salvação. Conforme o Novo Testamento, a fé é o caminho pelo qual na História da Salvação, o passado se torna eficaz para o indivíduo: consciência do pecado e da culpabilidade. A doutrina do Novo Testamento não é outra senão a doutrina da justificação do indivíduo por causa de Cristo. No Novo Testamento, crer é estar convencido de que toda a história se desdobra pelo indivíduo, que Cristo morreu pelo indivíduo sobre a cruz. Este evento central é para o indivíduo o evento central do tempo. Logo, tem-se uma eleição pessoal onde os cristãos pertencem desde o começo à Economia da Salvação. É pela predestinação que a vida de cada crente está situada em toda sua extensão temporal sobre a linha de Cristo. Logo, o crente é pecador e predestinado. Os sacramentos do Batismo e da Santa Ceia diferem aqui: o Batismo faz o indivíduo participar de uma vez por todas da História da Salvação, enquanto que, pela Santa Ceia, a comunidade se integra, sempre de novo, nos períodos passado, presente e futuro desta história.
Em seguida, Cullmann aborda o mesmo tema mas considerando o período presente da História da Salvação. Para ele, o indivíduo participa também, por conseguinte, da tensão temporal que caracteriza o tempo presente. Este tempo presente é o tempo da Igreja. Na Igreja, o crente pode ter participação ativa na História da Salvação. Na Igreja, o Espírito Santo concede dons. Inclusive, o próprio Espírito Santo é dom do período presente e do período futuro da História da Salvação. Só existiram doze apóstolos. O apostolo tem o papel temporalmente a cumprir na História da Salvação: estabelecer o fundamento único da Igreja, válido de uma vez por todas até o fim dos tempos. Em Jesus Cristo os crentes já estão libertos do poder do pecado. Isto significa que é no presente, sobretudo, que ele nos faz lutar contra o pecado. Para Cullmann, o Novo Testamento não é um código de regras morais gerais, mas existem apenas regras de fé. É destas regras de fé, resumos sucintos da obra de Cristo, que provém a exigência divina ao crente.
Por fim, fala-se do indivíduo e o período futuro da história da salvação. A ressurreição é, para o crente, objeto de fé e esperança. Conforme a esperança escatológica dos primeiros cristãos, o futuro do ser depende absolutamente de toda a História da Salvação. Salvação não significa simplesmente fugir do castigo do inferno ou a busca da felicidade pessoal. Os gregos é que pensavam assim quando falavam da “imortalidade da alma”. No Novo Testamento, a fé na ressurreição não pode existir se não for sobre o terreno da Bíblia onde toda a morte, toda decomposição, todo apodrecimento é um evento contrário à vontade de Deus e provocado por um único pecado dos homens. Nenhuma ressurreição é possível sem um milagre de Deus, um milagre criador dos corpos que na Bíblia, contrariamente ao pensamento grego, a ressurreição deve ser uma ressurreição dos corpos. Por isso a ressurreição é objeto da fé. Cullmann cita At 2.24. É pelo fato de nós nos fundarmos sobre a ressurreição de Cristo Jesus e crermos neste ato salvífico que podemos entrar atualmente nos domínios do Espírito Santo e sabermos que nos é permitido esperar pela ressurreição do corpo que será operada pelo próprio Espírito que já habita em nós (Rm 8.11). O crente já possui a vida eterna, mas conforme João, a ressurreição está reservada para o dia do julgamento (Jo 6.39, 40, 44, 54). O poder de ressurreição do Espírito Santo é decisivo e não somente para nós que vivemos, mas também aos que já morreram. No Novo Testamento, toda esperança na ressurreição está fundada sobre a fé em um fato do passado, quer dizer, o fato central da linha da salvação e objeto do testemunho dos apóstolos: a ressurreição e Cristo. (Rm 8.11).




CONCLUSÃO

Cullmann é de referencial importância na volta à Cristologia e à Teologia Bíblica dentro do contexto em que viveu. Deixar o centro da História da Salvação no evento da aparição De Cristo Jesus é o seu marco e o seu diferencial. Desenvolver sua teologia e suas abordagens ao redor desse centro é exemplo a ser seguido. Cristo e o tempo, com toda certeza, continua sendo relevante a um mundo pós-moderno que não quer ter referenciais. Como foi muito destacado pelo autor, a Bíblia deve ser a primeira fonte de informações da fé com seu centro em Cristo, o resto é resto, isto é, periférico.

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