Fabio Shiva 02/11/2023
A ruptura da quarta parede literária dissolve a fronteira entre a morte e a imortalidade
No dia 12 de julho de 2023 recebi a notícia da morte do escritor tcheco Milan Kundera no dia anterior, aos 94 anos. Como uma silenciosa (e talvez um tanto irônica, o que seria bem ao gosto do próprio Kundera) homenagem a esse grande escritor, decidir iniciar na mesma hora a leitura do livro dele que ainda restava em minha estante sem ser lido: “A Imortalidade”.
Apaixonei-me por Milan Kundera ao ler “Risíveis Amores” (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2020/12/risiveis-amores-milan-kundera.html). E a paixão virou um amor reverente depois que li sua obra mais conhecida (e provavelmente prima): “A Insustentável Leveza do Ser” (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2022/07/o-insuperavel-deleite-de-ler-uma-obra.html).
“A Imortalidade” é o romance seguinte, publicado sete anos depois de “A Insustentável Leveza do Ser”, como uma sequência e um aprofundamento de seus principais temas e obsessões. Lendo esse livro, pude entender um pouco melhor a grande proeza de Milan Kundera, que só posso descrever como a ruptura da quarta parede literária. Esse conceito de “quarta parede” é mais utilizado no cinema e no teatro, como uma divisória imaginária entre a história que está sendo contada e o público para quem está sendo contada. Fisicamente essa quarta parede é bem visível como a fronteira entre a tela do cinema ou o palco do teatro e a plateia, e equivale a uma distinção entre o que é ficção e o que é realidade.
Pois bem, penso que Kundera faz o equivalente literário a uma ruptura da quarta parede, recurso utilizado tanto no cinema quanto no teatro (quando, por exemplo, um ator se dirige diretamente à câmera ou à plateia). E Kundera faz isso de modo magistral, criando seus personagens às vistas do leitor, explicando suas motivações e objetivos. Isso ele já fez em “A Insustentável Leveza do Ser”, obtendo um resultado fabuloso. Em “A Imortalidade”, o autor leva esse recurso até o seu limite, intrometendo-se ele mesmo na história e interagindo com os personagens. Muito interessante é o principal interlocutor de Kundera, o professor Avenarius, um personagem exótico ao ponto do inverossímil. E é justamente esse personagem que conversa com o autor da história, gerando um efeito no mínimo lisérgico:
“– E qual será o título do seu romance?
– A insustentável leveza do ser.
– Mas esse título já está tomado.
– Sim. Por mim! Mas na época me enganei de título. Ele deveria pertencer ao romance que estou escrevendo agora.”
Evidentemente as intenções de Kundera são bem mais profundas que fazer um mero jogo de cena. Para quem ama literatura, é um deleite a sua exposição das ideias por detrás de “A Imortalidade”:
“Hoje em dia as pessoas vão em cima de tudo que foi escrito para transformar em filme, em drama de televisão ou em desenho animado. Já que o essencial no romance é aquilo que não pode ser dito senão por um romance, em toda adaptação só fica o que não é essencial. Quem quer que seja suficientemente louco para hoje ainda escrever romances, deve, se quiser protegê-los com segurança, escrevê-los de maneira que não possam ser adaptados, em outras palavras, que não possam ser contados.”
E continua o autor:
“Lamento que quase todos os romances escritos até hoje obedeçam demais à regra da unidade da ação. Isto é, que estejam fundamentados apenas numa sequência causal de ações e acontecimentos. Esses romances parecem uma rua estreita, ao longo da qual os personagens são perseguidos com chicotadas. A tensão dramática é a verdadeira maldição do romance, porque transforma tudo, mesmo as mais belas páginas, mesmo as cenas e as observações mais surpreendentes, numa simples etapa que leva ao desfecho final, onde se concentra o sentido de tudo que precede. Devorado pelo fogo de sua própria tensão, o romance se consome como um monte de palha.”
Achei especialmente divertida a conversa entre Kundera e Avenarius sobre as coincidências, criando uma curiosa classificação:
1) Coincidência muda – coincidência de acontecimentos que não faz nenhum sentido:
“No momento preciso em que o professor Avenarius mergulha [na piscina] (...), no parque público de Chicago uma folha morta cai de um castanheiro.”
2) Coincidência púntica – não tem nenhum sentido especial, mas é como duas melodias em contraponto:
“O professor Avenarius mergulhou na piscina no momento preciso em que Agnes, em algum lugar nos Alpes, punha seu carro na estrada.”
3) Coincidência geradora de histórias – especialmente cara aos romancistas:
“O professor Avenarius enfiou-se no metrô em Montparnasse no momento exato em que lá estava uma bela mulher segurando uma lata vermelha de pedir esmolas.”
E como sempre, em se tratando de Milan Kundera, até aqui falei apenas de alguns elementos secundários de seu livro. Para não deixar a resenha longa em demasia, encerro com algumas das muitas reflexões trazidas pelo livro, com as quais não necessariamente concordamos, mas cujo brilho não podemos deixar de admirar:
“A armadilha do ódio é que ele nos prende muito intimamente ao adversário.”
“Pode ser que seja necessário que a morte exista. Mas ela não poderia ser inventada de outra maneira? É realmente necessário deixar atrás de si restos mortais que temos de enterrar ou queimar? Tudo isso é abominável!”
“Contamos com a imortalidade, e esquecemos de contar com a morte.”
“Foi uma sorte enorme que as guerras tenham sido feitas pelos homens. Se as mulheres tivessem feito a guerra, teriam sido tão persistentes na sua crueldade que não sobraria nenhum ser humano sobre o planeta.”
“Por definição, o sentimento surge em nós à nossa revelia e muitas vezes com o nosso corpo se defendendo. Do momento que queremos experimentá-lo (assim que decidimos experimentá-lo, como Dom Quixote decidiu amar Dulcineia), o sentimento não é mais sentimento, mas imitação de sentimento, sua exibição.”
“Penso, logo existo é uma afirmação de um intelectual que subestima as dores de dente. Sinto, logo existo é uma verdade de alcance muito mais amplo e que concerne a todo ser vivo. Meu eu não se distingue essencialmente do seu eu pelo pensamento. Muitas pessoas, poucas ideias: pensamos todos mais ou menos a mesma coisa, transmitindo, pedindo emprestado, roubando nossas ideias um do outro. Mas se alguém pisa no meu pé, só eu sinto a dor.”
“Caminho: tira de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada diferencia-se do caminho não só porque a percorremos de carro, mas porque é uma simples linha ligando um ponto a outro. A estrada em si não faz nenhum sentido; só têm sentido os dois pontos ligados por ela. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho tem um sentido próprio e nos convida a parar. A estrada é uma triunfal desvalorização do espaço, espaço que hoje em dia não é mais do que um entrave aos movimentos do homem, uma perda de tempo.”
Milan Kundera está morto. Viva Milan Kundera!
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