R4 16/03/2015
A imortalidade da vida comum
Escolhi A Imortalidade, de Milan Kundera, pela Companhia das Letras para resenhar porque já conhecia outras obras do autor e já havia resenhado A festa da Insignificância. A cada vez que me deparo com um livro de Kundera, sinto uma certa barreira inicial ou uma dificuldade diferente. Porque propõe uma narrativa diferente, em que os personagens se misturam com o narrador, o ficcional se mistura com o "real".
A imortalidade conta a história do escritor que, sentado em um clube, observa uma senhora de sessenta anos saindo da piscina e fazendo um gesto jovial. Essa cena faz surgir na cabeça do escritor o romance em torno da personagem, Agnès, que costumava fazer esse gesto quando jovem. Portanto, este romance percorrerá a história de Agnès que sente o luto pela morte do pai e tenta se refugiar na Suíça. Ela é casada com Paul e tem uma filha chamada Brigitte. Outra figura importante nessa história é Laura, sua irmã mais nova que sempre tenta imitá-la.
É nessas duas personagens que está uma oposição do romance: a razão e a paixão. Agnès e Laura. O controle emocional e o drama são as oposições de duas irmãs. Laura usa óculos escuros para que pensem que ela tem chorado muito, enquanto Agnès se envergonha dos sentimentos:
"Quando seu pai morreu, Agnès teve que organizar o enterro.(...) essa música era horrivelmente triste e Agnès temia não conseguir reter as lágrimas durante a cerimônia. Considerando inadmissível chorar em público,pôs no seu aparelho de som uma gravação do 'Adágio' e a escutou. (...) Mas, quando soou pela outava ou nona vez na sala, o poder da música enfraqueceu e na décima terceira audição Agnès ficou tão comovida como se tocassem diante dela o hino nacional da Paraguai.". pp.229
A "imortalidade" é discutida em forma de filosofia através de dois personagens ilustres, Goethe e Ernest Hemingway. Os dois famosos escritores surgem em alguns capítulos no meio do romance para conversar, ironicamente, depois de mortos, sobre a fama e a imortalidade que envaidece, mas incomoda. As questões de imortalidade se tornam ainda mais contrastantes quando se pensa em autores famosos em oposição à Agnès, que teve uma vida absolutamente convencional e anônima. Mas o conceito é pertinente, porque uma dicotomia de vida-morte surge no romance do começo ao fim. Alguns personagens morrem - e, às vezes, a morte é anunciada logo no início - como no caso de Agnès, que morre em um acidente de carro quando tenta evitar um estranho suicídio.
Ainda mais interessante é que no livro, o autor se transforma em personagem e passa a interagir com algum deles em determinados momentos. Os personagens surgem na vida do narrador-escritor enquanto ele escreve o livro dentro do romance. Isso faz com que A imortalidade seja um romance dentro de um romance.
Assim como os outros romances de Milan Kudera, esse livro se dispõe a muita filosofia e desdobramentos do tema central, neste caso, a imortalidade frente a personagens com uma vida comum. Eu realmente gostei da escrita pouco convencional e elaborada de Kundera e, ainda que A Insustentável Leveza do Ser continue a ser o romance mais arrebatador, achei A Imortalidade bastante relevante dentre sua obra.
Eu já havia dito na outra resenha, adorei esse tipo de edição em capa dura e fico muito feliz por ter mais um livro do escritor com essa edição. Espero que a Companhia das Letras decida reeditar outras obras do Kundera, especialmente A Insustentável Leveza do Ser, para fazer parte dessa coleção. Preciso muito reler esse romance!