Craotchky 01/10/2016In memoriam"Naqueles tempos uma noite de luar era muito aproveitada..."
AVISO: isso não é exatamente uma resenha do livro; pouco falo dele aqui. Mais de 50 resenhas escritas (algumas não publiquei) e esta é a primeira e certamente única durante a qual acabei chorando enquanto escrevia. Nem acredito.
Certo dia, em casa de minha avó, no meio de uma conversação, ela usou a palavra "trabalhadeira". Eu, tolo, corrigi-a imediatamente lhe dizendo que o correto era "trabalhadora". Durante os nossos anos de convívio ela repetiu essa e outras palavras trocando o sufixo "ora" por "eira". E eu, imbecil, continuava a tentar corrigi-la. Tentava tirar minha vó de seu tempo, de seu mundo. Qual então foi minha surpresa quando, certo vez, por conta própria, recorri ao dicionário e lá estava, "trabalhadeira". Naquele dia descobri que, apesar de ter caído em desuso, a palavra não é errada tal como eu julgava. Pelo que me lembro, retifiquei meu erro informando-a de que ela não estava errada.
Pois Memórias de um sargento de milícias faz uso de palavras com o sufixo "eira" e isso me fez lembrar de minha avó. A linguagem é bem acessível, de relativa facilidade de leitura e, por vezes, achamos as tais palavras em desuso. Um dos clássicos brasileiros que mais me agradaram - não li muitos. Esperava eu um livro sério, até meio militar por conta do título. Porém o livro é engraçado, divertido, agradável, sobretudo na segunda metade. Narra a vida e peripécias de seus personagens de forma descontraída e várias vezes o narrador fala diretamente com o leitor, fato que proporciona conexão, intimidade.
"Quando temos apenas 18 a 20 anos sobre os ombros, o que é um peso ainda muito leve, desprezamos o passado..."
Tive que me policiar, cortar um bocado do texto, impor-me limites, do contrário você teria se enfadado com mais coisas sobre minha vó. Como ela chamava uma meia de carpim, uma carteira de niqueleira... Enfim, não vou começar de novo. Não penso muito nela. Depois de sua morte, hoje foi o dia em que mais pensei. Não lembro de já ter chorado por alguém falecido. Não esperava por isso.
Quero deixar claro que o choro não foi pela correção que eu fazia pois não me arrependo disso, faria novamente tudo igual, faz parte do que eu era e do que eu sou. As lágrimas foram por lembrar dela, pelas diversas recordações que me vieram. Tudo sem muita explicação.
Minha avó paterna, de nome Doralice, porém chamada pelos conhecidos de Dona Lídia, nasceu em 1923 numa dessas distantes estâncias do Rio Grande do Sul. Contaria hoje, se ainda vivesse, 93 primaveras completas. Faleceu em novembro de 2014 com 91 anos. Nunca leu um livro. Nunca aprendeu a ler e escrever. Nunca me passou pela cabeça ler algo para ela. Lamento. Apenas uma última coisa:
Eu adorava as raras vezes que ela deixava escapar algum palavrão.