Craotchky 07/12/2023O anel de GigesO que você faria se fosse invisível? Essa pergunta lhe traz algum desconforto? Pois deveria.
O homem invisível infelizmente se limita a ser um livro de ação. Wells perdeu a oportunidade de explorar as possibilidades especulativas acerca do potencial filosófico, moral e antropológico de sua história. Diante disso, para mim o livro foi mais interessante quando contrastou as expectativas sobre as supostas vantagens da invisibilidade, perante a realidade das desvantagens implicadas por ela.
Para não denunciar sua condição, o homem invisível precisa andar sempre descalço e nu em um país de temperaturas rigorosas, o que faz com que esteja sempre resfriado e com muito frio. A fim de não ser descoberto, problemas práticos surgem: ele não pode carregar nada; só pode comer escondido; atravessar a rua se torna bastante perigoso; sair na chuva, neve ou neblina é impossível; não pode abrir portas sem sinalizar sua presença; e o pior: não pode tirar selfies!
O homem invisível é um livro apenas okay, e interessante enquanto ideia criativa. Porém, lamentavelmente não se pode esperar grandes reflexões na história. Neste sentido, recomendo o mito O anel de Giges, relatado por Platão no livro II da República. Este, ao menos explora a dimensão moral de uma tal condição....
[ Giges encontra um anel que lhe torna invisível. A partir da impunidade concedida pela invisibilidade, Giges, tomado pela ambição, mata o Rei, seduz a Rainha e comete outras ações moralmente condenáveis. Neste cenário, Platão reflete que qualquer pessoa poderia agir perversamente ao se perceber invisível, uma vez que essa condição lhe dá o poder de conquistar enormes vantagens ao agir sem ter sobre si o olhar vigilante e julgador da sociedade e, sobretudo, sem sentir sobre si a ameaça de qualquer punição jurídica/social, afinal
"...ninguém é justo por livre iniciativa, mas por coação..." (A república, II, 360 c)
(No âmbito religioso algo análogo parece ocorrer: A escolha dita moral parece ser fortemente determinada por algum temor a uma punição divina, sem a qual talvez o indivíduo optasse por outro comportamento...)
Além disso, uma outra ideia pode se derivar desse contexto: o poder corrompe. Não é à toa que em O senhor dos anéis quase todos que vislumbram a posse do anel se deixam corromper pela poder por ele concedido. O poder corrompe na medida em que o indivíduo de posse dele se sente protegido, isto é, se sente em uma posição tal que nada o pode atingir. A impunidade será mesmo a mãe da injustiça? Ao que parece não é por princípios pessoais, mas por medo da punição e/ou outras consequências desvantajosas, que o indivíduo deixa de fazer coisas moralmente censuráveis. Será verdade também que uma certa ocasião (condição) pode fazer um ladrão?
Em 2014, no município pernambucano Abreu e Lima, após a polícia militar entrar em greve, incontáveis pessoas saíram às ruas, arrombaram e saquearam estabelecimentos comerciais e até a carga de alguns caminhões. Podemos especular com alguma segurança que a ausência da vigilância dos órgãos punitivos e a consequente sensação de impunidade no que
se refere a possíveis sanções judiciais, foram elementos encorajadores do comportamento execrável dos cidadãos da cidade. ]
obs.: Há vários vídeos das ocorrências em Abreu e Lima. Particularmente recomendo dois para quem tiver curiosidade:
https://www.youtube.com/watch?v=GZnROpcOAFU
https://www.youtube.com/watch?v=nzgZzWaBlUw