Luiz 31/12/2022
Anatomia da Invisibilidade Política, e a destruição moral
Livro: O Homem Invisível
Autor: H. G. Wells
Conhecido como o pai da ficção científica, H. G. Wells possui uma vasta publicação de livros que tratam do tema, misturado a elementos como: política, socialismo, utopia, transumanismo, futurismo, evolução biológica e social da raça humana, governança global, e muitos outros temas, produziu livros famosos como:
A Guerra dos Mundos
A Máquina do Tempo
Alimento dos Deuses
O Dorminhoco
Uma Utopia Moderna
Deuses Humanos
Nova Ordem Mundial
Conspiração Aberta
Além de muitos outros livros. Citei os que já li e fiz resenha.
Muitos ao lerem seus livros não percebem a proposta de Wells, não compreendem as camadas mais profundas de suas histórias para além do enredo proposto, e com esse livro "O Homem Invisível", não seria diferente.
Wells era um socialista fabiano, acreditava que a revolução mundial socialista viria de forma lenta e gradual, não era marxista, mas possuía uma visão semelhante a de Gramsci e da Escola de Frankfurt, por tanto produziu livros que em algum sentido promoviam, no imaginário popular, a ideia de um mundo melhor baseado no socialismo e no progresso científico. As palavras "Nova Ordem Mundial" são frequentemente utilizadas em todas as obras que citei anteriormente, pois foi ele quem as popularizou, ainda que hoje falar desse tema seja "teoria da conspiração", mas relembro que o autor possui um livro destinado somente a este tema, bem como os métodos para alcança-lo em A Conspiração Aberta, e discussões filosóficas dessa empreitada em Uma Utopia Moderna e Deuses Humanos, sendo este último, uma versão mais "literária" de projeto de humanidade pro futuro. Sendo assim, Wells discute em seus livros, quase como em um exercício imaginativo e filosófico, ou até sugestivo, de o como o mundo, proposto e moldado pelas idéias Fabianas, deve ser, como dito, assuntos de degeneração da moral "tradicional" e da religião, evolucionismo, cientificismo, socialismo e governança global, são temas chaves de sua obra, enquanto que O Homem Invisível, destoa ligeiramente desse padrão.
No livro "O Homem Invisível", acompanhamos a chegada de um homem na cidade de Iping e que deixa a população curiosa e amedrontada, sua aparência é misteriosa pois veste sobretudo, luvas, chapéu, óculos escuros e possui ataduras por todo o corpo, ninguém sabe seu nome nem de onde veio, possui temperamento irascível e é deselegante com as pessoas a ponto de afastá-las. Ao hospedar-se numa estalagem levanta as mais diversas suspeitas sobre seu estado até finalmente revelar ser um Homem Invisível, sendo responsável por muitos eventos, inclusive roubo, começa-se, então, uma perseguição à ele, ao passo que descobrimos depois sua identidade e o que ocorreu para se tornar um homem invisível.
O livro em si, talvez seja o menos "politizado" de Wells, em comparação aos que já li, não possui exatamente uma trama nessa pegada, poderíamos pegar uma camada mais "superficial" ao comentar brevemente sobre as implicações éticas e morais de ser invisível, discutir o certo e o errado, ou até mesmo a questão científica e histórica de se pensar na realização de um experimento científico que permitiria tornar alguém invisível, mas podemos tentar aprofundar mais esses temas à luz dos temas favoritos de Wells, por exemplo a Governança Global, se pensar na existência real, de pessoas que por serem tão poderosas ou até mesmo "superiores" são como "Homens Invisíveis".
"Um homem invisível é um homem poderoso."
(Homem Invisível/ H. G. Wells, p.62)
"É muito mais fácil não acreditar num homem invisível [...]."
(H.G. Wells, p.63)
É sabido que dentro de um círculo de poder, quanto mais alto for o cargo, a hierarquia, de alguém, mais inacessível é aquela pessoa, seja o comandante de uma força armada em relação à um recruta, ou um magistrado do STF para um graduando em direito, um presidente para um eleitor, um astro da música para seu fã... o que muda é a capacidade que temos de obter informações sobre aquela pessoa, seja pela mídia, redes sociais e etc, mas se vivêssemos em um mundo onde isso não é mais permitido, ou não existe, essas pessoas seriam como Invisível para nós, ainda que sua presença possa ser sentida pelos mecanismos de poder, se já leu 1984 de George Orwell, vai compreender minimamente este ponto, lá não se sabe de quem ou de onde vem as ordens, mas se sabe que são cumpridas, esses "ungidos" são intocáveis, invisíveis ao humano comum, e que assim como no livro, muita das vezes somos incapazes de reagir adequadamente a algo invisível que submete a nós.
"[...] Cometi um erro, Kemp, um erro monumental ao tentar realizar esse trabalho sozinho. Desperdicei energia, tempo, oportunidades. Sozinho... É incrível como um Homem pode fazer tão pouca coisa quando está sozinho! Um roubo aqui, uma agressão ali, e só. O que eu preciso, Kemp, é de alguém que me dê cobertura, um ajudante. E de um esconderijo, um lugar onde eu possa dormir, comer e descansar em paz, sem levantar suspeitas. Preciso de um aliado. Com um aliado, comida e repouso, milhares de coisas de tornam possíveis. Até agora segui uma linha de conduta imprecisa. Temos que considerar tudo o que a invisibilidade proporciona é tudo o que ela exclui. Porque, mesmo invisíveis, fazemos barulho. Adianta pouco para invadir casas. Se me pegam, é fácil me prender. Por outro lado, é difícil me pegar. Na verdade, a invisibilidade só é boa em dois casos: para se aproximar de alguém e para fugir. Portanto, é bastante útil para quem quer matar uma pessoa. Posso me aproximar de um homem, seja qual for sua arma, preparar meu ataque e abatê-lo como quiser. Esquivar-me como quiser. Fugir como quiser."
(Homem Invisível/ H.G Wells, p. 157-158)
O livro não só brinca com essa temática sutil, como também na capacidade que esse poder de invisibilidade torna o usuário insensível à questões éticas básicas, percebemos o como o personagem não só se modifica fisicamente como também moralmente, sua personalidade ainda que fosse problemática é potencializada com esse experimento de invisibilidade, e o perigo que a ciência, ao fornecer poder ainda que de forma impessoal, a seres humanos moralmente distorcidos, seja porque foi uma "essência" de mau que proporcionou a tal invenção científica ou, o contrário, a ciência que corrompeu o ser humano, são minimamente postas; a discussões sobre a natureza humana, se ela possui ou não uma essência, e se não possui, é moldada pelo ambiente, torna a reflexão mais complexa. A dissuasão de que às vezes o progresso científico pode em alguma medida, ao contrário do que geralmente pensamos, nos tornar pessoas piores ao invés de melhores, ou até mesmo a possibilidade da ciência feita por nós, acabar se voltando contra nós mesmos, quase como Frankenstein de Mary Shelley. Para o personagem, em alguns momentos bastava ficar invisível que isso significaria estar impune a qualquer coisa.
Há um breve comentário que inclusive compara a tecnologia como magia, seria a tecnologia atual um novo tipo de magia? Wells deixa esse gatilho para discussão. Por vezes coisas inacreditáveis acontecem, e mesmo testemunhando aquilo não conseguimos acredita e nos convencemos de que aquilo não passou de loucura, no livro vemos pessoas que mesmo vendo acontecimentos provocados na presença do Homem Invisível, acreditavam ser loucuras de suas mentes, e o quanto isso diz de nós seres humanos, o quanto estamos tão céticos e ignorantes a certas coisas, mas totalmente crentes em outras, a ponto de nos levar a cegueira, fazendo que se torne invisível para nós algo evidente.
"[...] É incrível. Três coisas assim, acontecendo dessa maneira, derrubando todas as minhas ideias preconcebidas, poderiam me deixar louco. Mas é tudo real! [...]"
(Kemp/H.G. Wells, p.107-108)
Esse poder de invisibilidade ainda que fosse instrumento para ambições distorcidas, também revelam o como torna a pessoa fraca, solitária e temerária em ser descoberta por seu desvio de conduta, ao passo que a invisibilidade lhe proporciona a impunidade, também lhe proporciona a solidão, o afastamento e a ignorância das pessoas, que para uma pessoa "complicada", pode se revelar bom ou ruim. Wells também brinca com a questão de que ainda que a invisibilidade lhe traga poder, e no livro existe por parte do personagem a vontade de implantar um Reino de Terror feito a sua vontade, a "Era do Homem Invisível", não há sentido em possuir tanto poder sem quem LHE VEJA sendo poderoso, para todo aquele que tem um poder de invisibilidade, existe o desejo de ser reconhecido como aquele que Manda. Isso em si é muito elucidativo.
"Quanto mais eu pensava, Kemp, mais me convencia do absurdo de ser um Homem Invisível [...]. Antes de fazer aquela experiência louca, eu sonhava com mil privilégios. Naquela tarde, tudo era decepção. Repassei mentalmente todas aquelas coisas que um homem pode desejar. Sem dúvida, a invisibilidade me possibilitava obtê-las, mas me impedia de desfrutá-las. A ambição, por exemplo. De que adianta ter orgulho de ocupar uma alta posição quando não se pode ser visto lá? De que serve o amor de uma mulher se ela acabará se transformando numa Dalila? Jamais me interessei por política, pelas patifarias da fama, pela filantropia ou pelo esporte. O que me restava fazer? E por isso tudo eu tinha me tornado aquele mistério enfaixado, uma caricatura de homem, coberto de ataduras!"
(Homem Invisível/H.G. Wells, p.153-154)
"[...] O jogo está apenas começando. Não me resta saída senão instaurar o Reino do Terror. Esta carta vem anunciar o primeiro dia do Terror. Diga ao chefe de polícia e a todo o resto que Port Burdock não está mais sob o comando da rainha. Esta sob o meu comando, o domínio do Terror! Hoje é o primeiro dia do ano uma nova era: a Era do Homem Invisível. Sou o Homem Invisível I."
(Homem Invisível/H.G Wells, p.170)
No fechamento do livro, a ideia de que o que separa muita das vezes "atos bons de ruins" basicamente se dá no intermédio do que o outro pode ou nao poder ver. Ainda que Wells não sobrecarregue o livro de temas globalistas e etc escancaradamente, ele trabalha com maestria sutil a questão da moralidade. Não é um livro fantástico, poderia ser melhor em diversos aspectos, mas tem temas bem interessantes de serem discutidos, assim como todos os livros que li dele, é uma obra fundamental do autor, em última instância. Cabe ressaltar que foram os contos de Wells que inspiraram Aldous Huxley e George Orwell, principalmente Huxley que compactuava com as mesmas ideias de Wells, fazendo parte do mesmo ciclo que Wells frequentava anos antes.