Coruja 21/01/2012A primeira vez que li O Paraíso Perdido, lembro-me de ter avançado quase aos trambolhões, nada acostumada ao estilo épico de Milton. Era novinha – devia ter uns dezesseis para dezessete anos – mas ainda guardo a lembrança dessa primeira leitura, de “alumbração”, de fascínio.
Mais tarde, ao conhecer um pouco da biografia do autor, ficou a sensação ainda mais forte de espanto e admiração – Milton não escreveu propriamente o poema, mas o ditou, uma vez que estava cego à altura em que compôs sua obra-prima. Burgess, o autor de Laranja Mecânica- e que era também professor de literatura – resume admiravelmente as impressões que temos ao somar esse dado ao todo:
"Em 1632, ele perdera a visão, e de agora em diante seu mundo se torna um mundo escuro de imagens relembradas, de sons sem cor, um mundo pessoal altamente autocentrado, o mundo do Paraíso Perdido. Esta grande epopéia registra o maior acontecimento conhecido dos povos hebraico-cristãos: a Queda de Satã e a conseqüente Queda do Homem. O mundo sem visão de Milton o torna capaz de pintar a vastidão obscura do inferno de modo mais eloqüente do que o poeta italiano Dante com sua nitidez de visão."
E já que estamos falando de Dante, Milton e visões do Inferno, gostaria de observar que entre estes dois monstros literários, só mesmo alguém como Gustave Doré para ilustrá-los. Minha edição de Milton não tem as ilustrações originais, mas não é difícil encontra-las na internet – e acho que é difícil superar o imaginário que Doré criou em cima desses dois épicos.
Voltando à história... Lúcifer caído, agora Satã, lançado ao Inferno após fazer guerra nos céus, decide se vingar fazendo com que o homem, a mais perfeita criação divina, caia como ele. E é exatamente isso que ele faz – mesmo, por momentos, contra sua própria vontade, incapaz de escapar à admiração daquela nova criatura que Deus criara a sua imagem e semelhança.
E essa segunda queda é algo ainda mais doloroso e absurdo que a primeira, uma vez que Adão e Eva não foram pegos desprevenidos e inocentes. No momento em que Satã se infiltrou no Éden, Deus lhes deu conhecimento de quem era ele e o que planejava.
Agora, se formos pensar em termos simplistas, o tema da Queda é na verdade uma grande piada meio doentia de Deus. Sendo onipotente, onisciente e onipresente, Ele sabia o resultado que viria de colocar a Árvore do Conhecimento no meio de Éden – sabia que o homem não conseguiria resistir.
O que Milton nos diz, porém, é que a despeito d’Ele saber o que aconteceria, era necessário permitir ao Homem que tivesse o livre-arbítrio, que ele pudesse escolher. Não pode haver virtude e pecado sem que haja um Fruto Proibido – o teste é o que dá significado à virtude e sem esta, o homem não pode viver sua plenitude como imagem e semelhança do ser divino.
Pode parecer um pouco complicado de acompanhar, mas faz sentido. O maior dom que Deus teria dado ao Homem seria o poder de fazer suas escolhas por si – e para que isso pudesse ser utilizado, era necessário que existissem escolhas. Pensando dessa forma, a própria queda de Lúcifer poderia ser vista como parte do Plano Divino – é necessário que exista o caminho do Céu e o caminho do Inferno para que o homem possa tomar uma decisão.
Se tudo isso já não fosse suficientemente polêmico, Milton criou um dos vilões – se é que podemos chamá-lo assim – mais interessantes, mais surpreendentemente nobres de toda a literatura. Lúcifer conserva na queda a majestade que o fazia ser o primeiro entre os anjos e por boa parte de O Paraíso Perdido não podemos deixar de nos sentir tão seduzidos por ele quanto Eva foi.
Ele é um gigante que ainda conserva suas asas, seu porte, seu carisma e sua liderança. Passo a passo, contudo, ele se despe de suas vestes divinas até rastejar como serpente e, da nobreza que ainda nos ofusca a princípio, resta apenas um discurso melífluo e o sentimento de mesquinhez, inveja e orgulho que, ao final das contas, foi responsável por sua queda.
Eis porque concluiu o poeta William Blake que “Milton era do partido do diabo sem sabê-lo.”. Por boa parte de O Paraíso Perdido, é o magnetismo de Satã – muito mais que a inocência de Adão e Eva – que nos prende e fascina.
Creio que nenhum outro elogio possa ser maior que esse ao gênio de John Milton.
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)