Lucas Rabêlo 10/07/2024
Eneias, o herói das ruínas
A trajetória de Eneias, guerreiro sobrevivente dos escombros de Tróia, segue errante e fadada à resiliência mitológica e geográfica imposta à terra do Lácio, lugar da insurgência formativa de Roma. Oriundo da tradição helênica, o latino Virgílio, autor de prerrogativas poéticas anteriores, alegóricas à ambientação pastoril e agricultora, tem com a Eneida sua fixação lendária no cânone da poesia épica, representante da gênese de uma nação que se manteve em constante expansão.
O autor romano, em missão quase patriótica, embebe o texto do referencial homérico numa saga diluída em 12 livros, cantada pelo hexâmetro dáctilo, mesmo que sem a difusão oral, permissiva em oferecer louros ao seu herói, o piedoso gestor Eneias. Sim, Eneida configura-se, nominalmente, nas suas gestas, é sobre ele, mas também sua geração vindoura, partindo do filho Ascânio e erradicando nos irmãos Rômulo e Remo, responsáveis pela supressão à cultura grega, ainda que esta tenha exercido tamanha influência.
Após a fuga de Tróia, derrotada pelo exército grego, Eneias, protegido por Vênus e evidenciado por Juno, deidade inimiga, compreende um itinerário que chegará a Cartago, cidade fundada pela rainha Dido, também andante, de província próxima, para uma parada confabulada, a narrar-se os percalços iminentes do presente momento, que incluem naufrágios; a restauração episódica da famosa invasão dos gregos à Ílion condenada, através do ludibriador Cavalo de Tróia; as tormentas de Cila e Caribde, monstros marinhos; aparições sobrenaturais dos homens de seu passado glorioso, entre mais. Deixa Dido, viúva há não muito, estarrecida e apaixonada. Sôfrego, inesperadamente lhe pesa esta condição romântica, inédita no decorrer desta história.
Quando Dido, tragicamente, se suicida em nome do platonismo (palavra ainda não enraizada no período, licenciada aqui), tem Eneias, empenhado por Júpiter, deus maior, a chance de perseguir sua sina e conquistar a Itália vislumbrada. Intermediado por Sibila, uma profetiza, a visitar o pai no reino dos Infernos, e premeditado por este, morto, que suas filiações das proles se fariam verdadeiras, emprega Virgílio o uso de uma prolepse, técnica que antecipa um acontecimento. É o fim da primeira metade da epopeia, simbolizada como análoga ao que fora a Odisseia de Homero, dissecada por aventuras e desventuras.
Os livros seguintes, do VI ao XII, derradeiros, serão a aproximação cada vez mais eminente de Eneias e os seus ao Lácio; a província romana tem por rei Latino, pai de Lavínia, prospecta pretendente do protagonista, que, obstante, odiado pela deusa Juno, contrária à constituição de uma nova civilização, insta Turno, rei dos rútulos, do reino vizinho, a levantar armas contra o troiano. Tal como na Ilíada, é um tributo do poeta para uma narrativa de cunho bélico.
Fatídico, Virgílio prepara terreno para um massacre entre os povos ocupantes no cenário da Península Itálica, local a onde convoca-se Eneias. Frente a frente, ele e Turno se enfrentam na batalha final, que confirma vitória do troiano, em que, impiedoso, contrário a seu epítome afável, eliminará o rival sob justificativa dos muitos assassinatos atribuídos ao antagonista. O desfecho é abrupto, mas definitivo.
Na edição presente, o tradutor Carlos Alberto Nunes, numa tradução resgatada, opta por uma lírica pomposa para os versos da Eneida, que bem observado por seu organizador, o prof. Dr. Joao Ângelo Oliva Neto, constata a convicção retórica de Eneias, cuja toda a diegese, seja na Ilíada ou no seu próprio texto, se reafirma através das cinzas do que foi, na tentativa de se reerguer do que virá, já que a cada livro uma parte de sua pátria se esvai, e seu senso de pertencimento é amiúde contestado.
Em sua obra maior, o romano canta em prol de sua ascendência ?eneica?, filologicamente eficaz para a reconstituição dos mitos que traçaram a simbologia originária do imponente povo romano. Consequentemente, herdeiros da projeção virgiliana, como Dante, que invocou o poeta em sua incursão pelo Inferno, e Camões, que se especializou na mesma técnica métrica para Os Lusíadas, tais autores reafirmam a expressividade intelectual que perpetuou-se em literaturas conseguintes. Sem a poeira de Tróia, não se veria a luz.