Raphael 26/05/2021Uma lástima que o mercado editorial brasileiro dê tão pouca atenção a uma escritora dessa qualidade...“Humano demais para ter sido um exemplo”. Tais palavras foram grafadas ao final do capítulo XIII de “A Sibila”, quando o narrador se detém ocasionalmente sobre um homem da Igreja – um abade – colhido pela morte em meio a uma comunidade rural que, mesmo conhecedora de suas fraquezas e de sua estrondorosa hipocrisia, o estimava. A frase parece desimportante no contexto em que é lançada, mas a meu ver ela carrega um substrato filosófico que atravessa todo o romance, qual seja a concepção segundo a qual a natureza humana é essencialmente corrompida. Por detrás das convenções sociais, dos modelos de conduta, de uma reverência socialmente compartilhada a uma virtude ideal, os homens e as mulheres são, com frequência, mesquinhos, torpes, egoístas, viciosos até mesmo em seus afetos, porque contraditórios, complexos, ambivalentes. Não é à toa que a grande protagonista deste Romance, a “Sibila” que dá nome ao livro, uma simples lavradora do Norte de Portugal chamada Joaquina Augusta – vulgo Quina - é descrita por sua sobrinha, Germana, como “a mais profunda e inegável expressão do humano”.
Os polos entre os quais Quina se move, diz-nos o narrador a certa altura, são a vaidade e certo misticismo. Em um plano mais geral, nutre certo desprezo pelas mulheres, rebela-se contra o seu tempo e contra o horizonte limitado que se lhe pretende impor, atrelado à “condição feminina”. Deseja muito mais que um bom casamento. Aliás, para que quereria um homem para atravancar-lhe a vida? Os exemplos em sua própria casa não eram nada animadores, a começar pelo próprio pai, o mulherengo e perdulário Francisco Teixeira, responsável por dilapidar o patrimônio da família, deixando-a em má situação quando de sua morte. Quina não quer, portanto, ser desejada pelos homens. Quer antes ser admirada por seu espírito, por sua inteligência e pelo seu excepcional tino para os negócios. Enriquecer e ser notável são seus grandes objetivos de vida. Logo, é Quina que se ocupará de reerguer o patrimônio da família, conquistando o respeito e a consideração de toda a comunidade local, constrangida pelos fatos a admitir-lhe os êxitos.
A narrativa de Bessa-Luís nos apresenta uma Quina que é virtualmente incapaz de uma atitude desinteressada, uma mulher que mesmo no plano afetivo age como quem transaciona. E isso, longe de torná-la uma figura desprezível, constitui parte do seu fascínio, empresta-lhe uma certa densidade humana, a despeito de suas excentricidades. Sua personalidade, diz-nos o narrador a certa altura, era “um misto incoerente de tendências ascéticas, desprendimento do mundo, e, ao mesmo tempo, um desejo incansável de notoriedade e de honras”. E acima de tudo, era dotada de um talento muito especial: uma maravilhosa capacidade de ler as pessoas, de compreendê-las em um plano que era muito mais intuitivo do que lógico-racional, o que lhe conferia uma notável capacidade de previsão e pré-conhecimento da vida, que o homem civilizado, embotado pelo artificialismo das convenções da sociedade burguesa, perde ou deixa de desenvolver por completo. Aliás, é impressionante como em “A Sibila”, os tipos burgueses e intelectuais são superficiais, em flagrante contraste com a profundidade e a complexidade de uma mulher inculta e sem instrução formal como o era Quina.
Por fim, trazendo a coisa para um plano mais pessoal, o que me encantou em Agustina Bessa-Luís – já tive ocasião de dizê-lo nesse espaço – foi o seu texto. Mais do que aquilo que ela narra, acho fascinante o como é narrado. Que texto maravilhoso! Como eu disse antes e reitero, isso é Grande Literatura. Recomendo muito, mas faço um alerta: o vocabulário agustiniano exige algumas idas ao dicionário, mas não deixe que isso te desanime. Vale muito à pena...
Quanto ao mais, é uma lástima que o mercado editorial brasileiro dê tão pouca atenção a uma escritora dessa qualidade.
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