Bruno 15/02/2014Uma leitura algo difícil, Michael Kohlhaas compensa pela seu enredo significativo e interpretações possíveis de uma boa apresentação. A tradução feita por Marcelo Backes para a Civilização Brasileira, nesta edição lançada no começo do ano para a coleção Fanfarrões, libertinas & e outros heróis, organizada por aquele, é completa e contamos com um instrutivo glossário, linha temporal do autor e posfácio que compõem as últimas quarenta páginas do volume.
Não é à toa que Franz Kafka considerou o protagonista homônimo da novela o seu parente consanguíneo – a própria história de Joseph K., contada pelo autor mais de um século depois, é reminiscente dos abusos e humilhações sofridas por Michael Kohlhaas no livro.
O protagonista é um tratante de cavalos que sofre uma injustiça ao ter seus cavalos apreendidos indevidamente e submetidos ao trabalho na lavoura pelo fidalgo von Tronka, além de ter um de seus servos espancado e mandado para casa quando este se colocou contra os maus tratos aos equinos. Kohlhaas, então, tenta reivindicar seus direitos e sua causa através dos legítimos métodos burocráticos de atingir a justiça na Saxônia, e nessa parte vemos o que seria levado ao seu eventual fim lógico por Franz Kafka em O processo: a incompetência deliberada, os atrasos e relações, a má vontade planejada dos contatos do fidalgo. E, portanto, Michael Kohlhaas, cansado de ser deferido pelos mecanismos estatais de justiça, resolve perpetrar a sua vingança pelo fogo e a espada, caçando implacavelmente o fidalgo von Tronka com uma trupe de desordeiros organizados sob a sua causa. Arauto da vingança, proclamando a justiça divina, Kohlhaas torna-se um criminoso aos olhos do Estado pela reivindicação de sua causa – e voltamos a ter de enfrentar os empecilhos e obstáculos do Estado contra o tratante.
"A novela é fundamentada em alguns binômios centrais, que sedimentam grandes embates filosóficos. De um lado, o dieal subjetivo, do outro a realidade mundana; de um lado a liberdade individual, do outro a opressão governamental; de um lado o povo, de outro a nobreza; de um lado a missão social de um Estado nascituro, do outro o abuso de poder perpetrado peor seus represnetantes. Direito e justiça se digladiam na arena da impotência. (Marcelo Backes, pg. 153)"
E a mudança de Kohlhaas de um pacífico comerciante em respeito as leis para um sanguinário anjo vingador não passa despercebida. De certa forma, os temas da leitura, considerando que este livro é escrito no começo do século XIX e ambientado em meados do século XVI, são universais – mais tardes representados no começo do século XX, em forma bem similar, por Kafka, e até hoje experimentada por aqueles que devem se frustrar com os trâmites incompreensíveis e burocráticos de um tribunal de justiça.
Vemos em Kohlhaas um representante da justiça em um mundo de injustiçados, e é difícil não sentir empatia por esse tipo de personagem. Em toda a história, sentimos justificados os crimes que comete em retaliação a uma sociedade que, segundo ele, não protegeu os direitos e portanto o exacrou de seu seio. E, assim como a causa que ele busca é universal e até ahistórica, a simpatia daqueles que em qualquer momento podem se ver na pele deste protagonista é facilmente garantida. Quantas pessoas já não se sentiram injustiçadas? Quantos não sabem que um mero cidadão, em confronto direto com uma força política de contatos e status, mesmo com uma causa justa, teria esta deferida?
Interessa também os múltiplos personagens pertinentes à obra, uma grande mescla de pessoas de extratos sociais distintos – desde os soberanos príncipes eleitores de certas regiões em que a obra é ambientada, até servos e camareiros de baixo escalão. Não conseguimos ver uma grande interação em diálogo, visto que estes mesmos são escassos no decorrer da obra (inteiramente composta em discurso indireto ou indireto livre nesse quesito), mas as suas atitudes já demonstram a mudança de etiqueta desta longínqua época feudal.
Em um âmbito de forma literária, é notável um distanciamento da forma atual de escrita. É claro, o livro foi escrito há mais de duzentos anos, e a tradução faz bem uma adaptação das pontuações alemãs, como nota o tradutor mais tarde no posfácio, e pontua algumas diferenças em seu glossário, logo depois do corpo principal da narrativa. Entretanto, para o leitor atual, a narrativa é desgastante devido ao acentuado tamanho das frases. As sentenças são encadeadas em um período composto de várias, várias orações, o que deixa a leitura algo confusa para alguém que leia com pouca concentração.
"Quis o acaso que o príncipe eleitor da Saxônia, atendendo ao convite disposto a distraí-lo feito pelo oficial jurisdicional, o conde Aloysius von Kallheim, que na época era o dono de consideráveis prorpiedades na fronteira da Saxônia, encontrava-se em viagem a Dahme para uma grande excursão de caça e cervos, acompanhado do camareiro, senhor Beltrano, e de sua esposa, a dama Heloise, filha do oficial jurisdicional e irmã do presidente, sem contar outros senhores e damas brilhantes, fidalgos à caça e homens da corte; [...] (pg. 101)"
O tradutor Marcelo Backes, também em uma análise esclarecedora em seu posfácio, não deixa de citar que a novela original se compunha em parágrafos imensos (tendo o maior dezoito páginas), e que a adaptação fez o serviço de dividir alguns dos travessões, que no original se equivalia a uma mudança na encadeação, em quebras de parágrafo. Temos um exemplo mais tarde de uma adaptação mais fiel de como ficaria a forma paragrafal e… é, digamos que é mais confortável a leitura do jeito que está agora. Mesmo.
Apesar de uma forma que exige certo investimento e, para alguns, pode acabar tornando o livro uma chateação, Michael Kohlhaas não deixa de ser um conto atemporal sobre várias camadas temática: a impotência, a inconformidade, a ação, a vingança. E, no final, estamos satisfeitos.
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http://adlectorem.wordpress.com/2014/02/15/michael-kohlhaas/