Lucas 09/01/2023
A velhice como instrumento de contemplação e reflexão
Foi cerca de dois meses antes de falecer, em setembro de 1908, que o escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) lançou a sua última preciosidade literária: Memorial de Aires marca as derradeiras linhas do maior escritor brasileiro de todos os tempos. Mesmo que não possa ser comparado às obras mais famosas de Machado de Assis, este seu último livro funciona como um grande compêndio da carreira literária do "bruxo do Cosme Velho".
Se Memorial de Aires é a última obra da vida de Machado de Assis, ela é a segunda "escrita" por José Marcondes da Costa Aires, conselheiro (espécie de cônsul, com carreira diplomática internacional) que já havia narrado Esaú e Jacó, livro de 1904 que trata das contendas entre dois irmãos da aristocracia carioca. Lá, o conselheiro Aires já tinha dado pistas da existência de um diário onde ele escrevia passagens dos seus dias. Estas anotações diárias correspondem ao próprio Memorial de Aires, estruturado sob uma forma de diário com relatos não contínuos ocorridos entre 1888 e 1889. Diplomata aposentado e viúvo, Aires tinha voltado ao Brasil em 1887 para aqui viver seus últimos anos de vida.
Desse modo, o conselheiro se apropria do seu conhecimento como diplomata e de uma robusta capacidade de observação para registrar no papel as suas relações pessoais daquele período, sem um viés apaixonado ou tendencioso. A começar pela irmã, Rita, pela qual nutre um afeto especial. O escopo do olhar de Aires, no entanto, recai sobre o casal Aguiar e D. Carmo, que se não eram família do protagonista, foram claramente baseadas na própria vida de Machado de Assis e sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais (1835-1904). Assim como na ficção, Machado e Carolina não tiveram filhos, algo a qual parece ter deixado-os melancólicos especialmente com a chegada da velhice.
Mas Aguiar e D. Carmo, se parecem espelhar esse sentimento de frustração, tiveram dois "filhos" de criação. O primeiro deles foi o afilhado Tristão, que passou boa parte da sua vida até a adolescência cercado pelos cuidados e mimos dos padrinhos. Depois, o moço acompanhou seus pais em mudança para Lisboa. Posteriormente, o casal Aguiar "adota" Fidélia, rica viúva que havia casado sem a permissão dos pais, fazendeiros do interior do Rio de Janeiro.
Fidélia é a protagonista feminina das memórias do conselheiro. A contemplação da moça aos pés do jazigo do seu marido falecido é o pano de fundo da primeira cena do livro, inclusive. Tal cena é o gatilho para a questão da viuvez, que gera nas páginas do memorial várias e cirúrgicas reflexões de como se dá a relação entre quem fica e quem foi. Na retaguarda desse contexto, Machado (ou melhor, o conselheiro Aires, pois ambos parecem confundir-se) traz ao leitor outra tônica: a velhice, com todos os seus desdobramentos (positivos ou não).
As memórias escritas pelo conselheiro Aires são, numa definição exageradamente curta, uma grande reflexão não linear sobre essa fase da vida. Se aos olhos dos mais jovens a velhice pode ser uma sucessão de monotonias (a leitura da obra, inegavelmente, alimenta essa sensação), a terceira idade é sim um momento de reflexão. Aires nos ensina que ser idoso não é ser inútil: é estar mergulhado num contexto que preza pela observação, pelas companhias amigas, pelas relações desenvolvidas durante os anos (relações estas mais pessoais, próprias do final do século XIX, quando tudo certamente parecia passar mais devagar), o convívio com a solidão e seus meandros (nem todos negativos), a já citada viuvez e a relação com entes queridos que já partiram, os tipos de legado que uma geração pode passar para a outra, entre inúmeros outros temas. E tudo isso é derramado por Machado de Assis não de uma forma melancólica, mas sim com uma narrativa serena e com os já recorrentes traços irônicos e de bom humor machadianos.
Aires, entretanto, não olha só para os seus companheiros de velhice: boa parte do seu diário dedica-se a observar e refletir sobre uma linda história de amor, que envolve dois personagens já citados. Temos, assim, o contraste entre a velhice e o nascimento de um relacionamento entre dois jovens. Estes elementos não são apresentados ao leitor dicotomicamente, entretanto. O olhar do conselheiro Aires tempera com ainda mais sabedoria e maturidade a sublime decisão de passar a vida com alguém. E isso era lindo em 1889 e é lindo ainda hoje, apesar de esquecido por uma realidade fútil e imediatista.
Tal fato também amarra a narrativa e traz substância ao raciocínio exposto inicialmente: ao usar um discurso em primeira pessoa sem estrutura convencional (o diário propriamente dito) e colocar nisso uma boa dose de romantismo, Machado de Assis une os traços de romantismo de suas primeiras obras com o verbo realista que o caracterizou a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Por mais que Machado de Assis nunca tenha esquecido-se do papel do romance em seus últimos livros, aqui ele atinge um nível superior de equilíbrio entre romantismo e realismo, vertentes que confundem-se na sua trajetória literária.
Memorial de Aires é um livro que sela com qualidade a carreira literária de seu autor. Apesar dos momentos de monotonia, a terminante obra de Machado de Assis oferece lindos momentos de contemplação, descritos sob um olhar simpático e aprazível do conselheiro Aires. Machado de Assis não poderia, portanto, ser mais certeiro: ao escrever um livro que trata da terceira idade no Rio de Janeiro do final do século XIX, ele deixa um relato com muito de si mesmo, elevando ainda mais grau de qualidade do seu perene legado literário.