Leila de Carvalho e Gonçalves 26/10/2017
Último Romance
Eis o último romance de Machado de Assis. Publicado em 1908, mesmo ano em que ele faleceu, é ao mesmo tempo o mais triste e o menos pessimista dentre todos.
Após enviuvar, quatro anos antes, o escritor manteve a mesma ironia e o gosto pelas digressões, nas amenizou seu ceticismo em prol de um tom mais nostálgico. "Memorial de Aires" revela essa mudança, inclusive, exibe aspectos autobiográficos.
Sua história retrata a vida em família da elite carioca no final do século XIX. Curiosamente, as personagens primam pela afabilidade até mesmo uma certa ingenuidade, muito diferentes da complexa dimensão psicológica do restante de sua obra. Portanto, o livro além de ser seu testamento literário e humano, também revela uma perspectiva mais romantizada da vida.
O protagonista e narrador é o Comendador Marcondes de Aires que fez sua estreia em "Esaú e Jacó". Trata-se de um diplomata recém-aposentado que decide regressar ao Brasil em 1888, pouco antes da Abolição. Inaugurando essa nova etapa, ele decide escrever um diário, trazendo à luz suas relações com as pessoas mais próximas. Desse seleto grupo destacam-se sua irmã Rita e um casal sem filhos, Dona Carmo e Seu Aguiar. Vivendo juntos há mais vinte anos, eles transferiram seu afeto para dois protegidos: Tristão, um médico que está morando em Lisboa, e Fidélia, uma jovem viúva por quem o comendador sente-se atraído, contudo, falta-lhe coragem para revelar seu sentimento.
Polido e de caráter rígido, ele assume a postura de um simples observador que procura adivinhar o íntimo das pessoas através de suposições ou informações alheias. O professor e historiador Alfredo de Bosi define sua personalidade em poucas palavras: "ouve mais do que fala e concilia o quanto pode.? Curiosamente, o leitor mais atento perceberá a identificação da personagem com o autor, por sinal, seus nomes apresentam as mesmas iniciais (M. de A.). Em síntese, Machado transfigura-se no Conselheiro Aires, a fim de revelar suas reflexões sobre o enfado e a falta de ideais na velhice.
Outra curiosidade é a identificação entre o casal Aguiar e o casal Assis, compactuando a mesma solidão, sobriedade e tristeza no final da vida. Aliás, Carmo, Rita e Fidélia, as três personagens femininas do livro, nada mais são do que a projeção de Carolina, mulher do escritor, no papel de "mãe", "irmã" e "esposa".
Apontando para a feliz união de Tristão e Fidélia, a jovem foi casada por pouco tempo com um inimigo político de seu pai, remetendo a um dos principais temas do livro, frequentemente explorado pelo autor: a fidelidade da mulher ao marido, não importa se ela é casada ou viúva.
Como sugestão de leitura, indico o trabalho de Pedro Meira Monteiro sobre a influência da ópera "Fidélio", de Beethoven, na narrativa. Diogo Pacheco de Veloso também possui uma pertinente trabalho, "Memorial de Aires e as dilacerações da escrita e do eu", voltado para a forma como a narrativa foi escrita. Porém, não deixe de ler "Machado", de Silviano Santiago, e "Memorial do Fim", de Haroldo Maranhão, cujas considerações comprovam a importância do romance na obra machadiana.