Lucas Rabêlo 29/09/2022
O Amor, este soberano dos corações
Figura mítica do que foi a Era das Luzes, Voltaire não era apenas iluminista por vocação, desmembrava com robustez as vertentes morais e sociais. Brincava de justiceiro em abnegar de sua noção para tecer críticas infindáveis aos modos comportamentais e sistêmicos da época. Francês de nascença, enveredou pelo mundo ao passo que chocava os países deste em suas afrontosas declarações ao coletivo intelectual e judiciário. Na pretensão de confrontar a tolerância religiosa, satirizou os pensamentos do filósofo Leibniz, que formulara o princípio da pretensão do mal do mundo como não referente a Deus, o homem se responsabilizava por seus atos naturais, além de seu otimismo pregado – o homem teria que honrar sua racionalidade adquirida.
A obra foi composta num tempo curto, e curta também é sua apropriação editorial. A narrativa é fluída, leve, ágil e divertida, mesmo para um compilado assinado há séculos anteriores. Apoiado nos romances de aventura, o jovem Cândido, expulso do castelo em que vivia na Alemanha, após beijar a filha do barão, sua exímia musa, Cunegundes, experimenta uma odisseia global; passa pelas artimanhas geográficas e políticas da Europa, América e Ásia, um pouco do que experimentara o próprio autor, em atos punitivos que seus escritos lhe causaram. Seu protagonista segue justamente à ciência moralista de Dr. Pangloss, um conselheiro que fazia as vezes do vocativo de Leibniz, para intuir que independentemente de percalços, tudo sempre seria bom e gratificante. Até o sermão dois.
Na saga instituída ao herói, ele se depara com figuras de seu passado, percorre os passos da amada, passando pela Guerra dos Sete Anos (1756-1763), o terremoto de Lisboa, os autos da fé, à ilusória Eldorado, à mágica Veneza, e experimenta o amargor da compleição corrompida do ser humano: é aí o xeque mate da novela, o palpável estertor da condição de seus componentes terrestres, a predileção pela cobiça, inveja, morte, traição, e demais substantivos que moldam o integrante societário. Cai por terra a temática de Pangloss, e se aproxima da evolução objetivada, a sensação de incompletude, mesmo que através do humor – aqui, ri-se muito.
Cândido, o Otimista, enervado diante de tamanha provação pessoal, abdica de interagir ao reino perfeito e idealizado sob as condições conformistas que sua criação o elevou. Numa fala, próximo à sua conclusão capitular (trinta, ao total), Martinho, a célere oposição de Pangloss, desatina à esgarçada melancolia pessimista universal. Mas, entremeado às lições apreendidas e vividas, o Otimista aprende a equilibrar supressões e a encarar uma fórmula individual, cultivando “seu próprio jardim”. Em suma, dada a peripécia Voltariana ao leitor, é a sensibilidade crítica em ater às mãos um registro inquieto em sua forma e em sua irresolução – "Se este é o melhor dos mundos, como serão os outros?" hoje, pouco mudou e o otimismo virou bula de antidepressivo.