hanul_ 10/05/2024
"Eu vou matar um 🤬 #$%!& se eu não achar as minhas botas"
Meridiano de Sangue foi meu primeiro contato com a escrita e literatura do Cormac Mccarthy e, assim como todos que viraram e são até hoje meus autores favoritos, eu quero ler outras de suas obras desde o primeiro parágrafo que li deste livro.
Quando comecei a escrever essas palavras eu nem havia terminado a leitura ainda, mas eu sabia que para tecer um comentário decente (e eu queria muito fazê-lo), eu não poderia esperar o livro acabar pra acabar pois, desde que ingressei nos úlitmos capitulos, sabia que algo terrivelmente grandioso estava para acontecer.
Bem, eu sou uma grande fã de faroeste, não tenho o direito de mentir. Não apenas do western estadunidense, mas de tudo o que circula esse gênero - como alguns filmes do Glauber Rocha. Então, eu achei recomendações desse livro, justamente enquanto buscava por títulos com essa temática e, como a fã de carteirinha que sou, desde a sinopse a leitura já me parecia promissora. O fato é, eu tinha grandes expectativas com essa leitura e todas elas, não apenas foram alcançadas, como superadas, inclusive, acho agora que eu estava é esperando muito pouco do que Mccarthy conseguia fazer com ás palavras.
Eu estou, pessoalmente, em uma época complicada da vida, tendando dar conta de trabalho e faculdade e todo o universo de coisas que se incluem nessas duas, isso, juntamente com o fato da escrita do autor em si (que falarei mais a adiante) tornaram essa uma leitura longa. Eu não me lembro de ter demorado tanto tempo para ler um livro, os Irmãos Karámazov, por exemplo, li em pouco menos de um mês e com uma rotina mais ou menos no mesmo ritmo.
Porém, toda essa dificuldade se deu ao fato de que (e eu acho que é importante falar disso primeiro): Meridiano de Sangue é uma das leituras mais brutais que eu já tive e, honestamente, pensar que algo possa ultrapassar isso aqui eu considaria preocupante. Vou dizer que, no que diz respeito aos livros, eu realmente nunca tive muitas leituras violentas e sanguinárias, mas esse tipo de coisa nunca me incomodou no geral, pelo contrário, eu sou uma fã terrivel de filmes de terror, aqueles bem toscos de fato, com um assassino perseguindo as pessoas mais burras que você já viu na Terra e matando elas de forma gráfica. Isso não me afeta. Contudo, em todo (todo mesmo) capítulo deste livro, eu precisa parar, respirar, fechar um pouco as páginas, olhar em volta... sair daquela cena, daquele momento, perceber novamente que eu estava sentada, lendo, e não no meio do oeste americano vivenciando aquelas brutalidades ao vivo e a cores.
Veja, ninguém escapa impune daqui e você, enquanto leitor, acompanha por cerca de 350 páginas ás pessoas cometendo todo tipo de barbaridade contra todos. Animais, crianças, idosos, bebês... todo mundo. E você se pergunta "por que isso?" e a resposta é "a troco de nada mesmo". O mundo é cruel, acostume-se com isso.
Mas entenda, não é apenas a questão das cenas "gráficas". Se o livro fosse um amontoado de "e fulano perdeu a cabeça", "arrancaram a perna dele fora" isso não me incomodaria. A questão é que, a escrita do Mccarthy te guia por essa violência tão brutal, tão sanguinolenta e tão cínica, como se você estivesse ali, vendo tudo aquilo na sua frente. Os parágrafos são uma mescla atroz de todo tipo de horror que um ser humano pode provocar a outrem e, a cada linha que você lê, fica pior, o estômago revira mais e o desconforto aumenta.
Isso, desconforto. Que leitura desconfortável. Os Santos estão no céu e aqui, na melhor das hipóteses, você tem aquele que é menos violento, se der sorte, ele é "apenas" omisso.
Existem aqui, passagens que eu quase senti no meu nariz o cheiro de sangue e o cheiro de pólvora. Tudo é tão imersivo, tudo é tão real, tudo é tão concreto que parece um sonho febril maluco, como se cuidado! O próximo a tomar um tiro nessa confusão vai ser você.
Só que, acho que o pior mesmo é essa brutalidade cínica e nilista que Meridiano de Sangue não tem vergonha nenhuma de esconder. Pode ser durante ou depois, mas após uma cena sanguinária, Mccarthy não tem medo de nenhum de jogar sal na nossa ferida e gritar que aquilo tudo é só outro momento do dia. Aquilo é o oeste americano, você esperava o que? É como se o pior fosse, após tantas atrocidades, perceber que, no fundo, a terra daqueles desertos vai cobrir o sangue, que os ventos vão levar as cinzas das casas, que os animais vão brigar com os vermes pelos restos que sobraram e que, algum dia, os ossos desconhecidos serão avistados por viajantes desavisados ou até piores do que aqueles que ali pereceram. É como se fosse um ciclo eterno de brutalidade. Veja, em uma das passagens do livro, um dos homens, literalmente, joga fogo em outro. Qual o motivo daquilo? Qual a razão? Bem, ele queria. O mundo é violento, logo, ás pessoas são também. É febril ver como as personagens lidam com tanto sangue derramado, com tanta profanação... como se fosse normal. São inumeras cenas que os viajantes se deparam no oeste, desde os restos mortais de humanos e animais, até ás cenas mais bizarras, como se fossem retiradas diretamente de algum filme de terror que envolve seitas e rituais diabólicos. Talvez, se envolvesse seitas e rituais, fosse mais aceitavel, pois ai, ao menos, haveria alguma razão por trás disso e não apenas a sanguinolência. E, entenda, não estamos acompanhando as vitimas, estamos cavalgando junto dos agressores, as maiores brutalidades aqui lidas, são perpetradas pelo grupo protagonista da história. Para eles é normal... eles apenas seguem.
Mas afinal, se tudo é tão terrivel e horroso por que alguem leria isso? "tem certerza que você gostou dessa história?", eu posso dizer que esse, sem dúvida, é um dos meus livros favoritos, contudo, não posso mentir e dizer que seja uma leitura fácil, que todos vão aproveitar. Eu entendo que, talvez, certas pessoas jamais leiam esse livro por problemas reais em lidar com a violência. Porém, novamente, ser uma leitura desconfortavel, não a torna ruim, muito pelo contrário, certos tipos de provocação feitos pelo autor e seus personagens, só provocam o impacto que tem (de te fazer pensar neles por horas a fio) graças a esse incomodo.
Além do mais, eu preciso dizer que, é possivel sim sentir simpatia pelo nosso protagonista de fato. O menino não tem nome (e ele não é um menino de verdade, ele tem 19 anos) mas, sempre é referido como "o menino".Ele é uma pecinha muito pequena nessa engrenagem de crueldade e, para o nosso próprio bem estar, ele parece ser uma das únicas 3 pessoas dessa histórica que não vão matar alguem por causa de um olhar torto na rua. Arrumar briga e trocar socos? Com certeza! Mas matar não.
Ainda que no fundo, uma morte a mais ou menos, honestamente, não faz diferença.
E, me deixe ser justa, se a escrita de Mccarthy é boa pro horror e sanguinolência, também é boa para fazer o leitor embarcar nessa viagem quase psicodélica de maneira magistral. Enquanto o grupo de viajantes caminha pelo deserto, pelas noites geladas, existem passagens da descrição árida que são tão, mais tão bonitas, que quase nos fazem crer que aquele mundo não é tão cruel quanto parece. Não bastasse tal maestria na condução das palavras, não raramente, a poesia e a brutalidade se misturam e se confundem na descrição dos lugares e dos acontecimentos, causando ao leitor uma sensação tão pura de estar em um mundo tão real, que parece fantasioso.
A noção de realidade, imaginação, real e sobrenatural, divino e profano estão constantemente misturadas entre o sangue e a sujeira do oeste nesse meridiano brutal.
A crueldade do mundo é tanta, que todo e qualquer ato que não seja fundado em vontades perversas de crueldade é digno de glória, mas também de pesares, pois, no imenso deserto fo oeste quem se permite reservar um pedaço da alma para ter piedade dos outros, quase sempre encontra um destino tão cruel quanto os sanguinolentos.
Em linhas gerais eu digo que, o ls últimos capítulos desse livro são o seu apogeu no meu humilde ponto de vista. A tensão construída ao longo de toda a narrativa encontra-se borbulhante no final, como um animal selvagem indomável que pode, a cada linha, ter uma atitude cruel e impensada, resultando em finais tão trágicos quanto pode conceber a humilde mente humana.
Destaco o final do capítulo 23. Não é uma cena de violência, é algo tão genuino que me fez querer chorar.
Que livro cruel!
Enfim
Para aqueles que, assim como eu, vão testar o limite do próprio estômago e se aventurar por esse cenário infernal. Desejo-lhes boa sorte! É uma viagem só de ida, a um destino incerto e cujas marcas retumbarão em nossas almas, talvez, para sempre.
"Ele diz que ele nunca dorme. Ele está dançando. Ele diz que nunca morrerá"