Leonardo 04/07/2011
Literatura é uma arte
Disponível em: http://catalisecritica.wordpress.com
Desde que li “Como e Por Que Ler”, do crítico literário Harold Bloom, aguardava com ansiedade o momento de ler Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy. O crítico aponta a obra como uma das maiores do século XX, uma verdadeira obra de arte. Como falei em um dos meus primeiros posts no blog, não gosto de começar a ler um autor pela sua mais aclamada obra. Assim, acabei comprando “A Estrada” e posteriormente “Onde os velhos não têm vez”. Conscientemente comecei a criar uma aura de expectativa em torno de Blood Meridian. Agora, que estou finalmente lendo, posso afirmar que não houve qualquer frustração. Além do encantamento natural com o que esse americano escreve (não foi diferente com os outros dois livros), descobri algo que deveria ser óbvio para mim: a escrever é uma arte!
Mas isso é mais do que óbvio! É tremendóbvio! Entretanto… Explico:
Um dos meus grandes sonhos é escrever bem algum dia. Não sei se conseguirei. Mas é uma meta, trabalharei para isso. Eu me desanimava enormemente, todavia, quando lia algum texto genial, como algumas passagens indescritíveis e mágicas de Faulkner, de Santo Agostinho ou do próprio McCarthy, apenas para citar exemplos de autores que li bem recentemente. ”É um dom”, eu pensava, e como tal, você nasce com ele ou nasce sem ele. Não se ganha depois de crescido. No máximo, se eu não tenho esse dom, posso desenvolver bem a técnica da escrita, adquirir bagagem com muita leitura e escrever bem, ou até mesmo MUITO BEM. Mas escrever essas coisas que esses gênios escrevem… Jamais.
Até que comecei a ler Meridiano de Sangue à luz da crítica de Harold Bloom. Vejam abaixo algumas passagens emblemáticas do romance:
- Descrevendo o ambiente do deserto, ameaçado por uma tempestade:
“Ao longe pequenos arquipélagos escuros de nuvem e o vasto mundo de areia e arbustos abreviado ao mergulhar no vazio sem margens acima onde aquelas ilhas azuis estremeciam e a terra ficava incerta, gravemente adernada e fixava o curso através dos matizes de rosa e das trevas, além da aurora rumo à mais remota chanfradura do espaço.” (uh?)
- Advertência de um velho religioso:
“A ira de Deus está adormecida. Ficou escondida um milhão de anos antes dos homens e só os homens têm o poder de despertá-la. O inferno não encheu nem a metade. Escutem o que estou falando. Vão levar a guerra criada por um louco a uma terra estrangeira. Vão acordar bem mais que os cães.”
- Quando kid, o protagonista, está de saída de sua terra natal:
“Só agora a criança se despe enfim de tudo que foi. Suas origens tornam-se remotas como seu destino e nunca mais outra vez por mais voltas que o mundo dê haverá plagas tão selvagens e bárbaras a ponto de pôr à prova se a matéria da criação pode ser moldada à vontade do homem ou se o seu próprio coração não é uma argila de outro tipo.”
Lendo esse tipo de construção entendi que a literatura é uma arte. Não há dom que faça uma pessoa sentar e escrever aquilo que está na primeira citação, sobre o deserto. De jeito nenhum. E aí entendi, ao comparar com outras artes. Um pintor pode desenhar um rosto perfeitamente, mas seu trabalho só vai se tornar imortal, ele só vai ser reconhecido como um gênio à medida que ele trouxer personalidade à sua obra, quando ele encher seu desenho, mesmo um rosto somente, de significados. Lembrei da análise que já vi do quadro de Rembrandt, “A volta do filho pródigo”. Cada detalhe abre margem para interpretações diversas. É uma mãe mais fina que a outra, é a sandália de lado, a cabeça raspada, o olhar do pai, enfim: Rembrandt não pegou o seu dom e disse: vou pintar um velho abraçado a seu filho. Ele pensou nessa imagem e parou, refletiu, calculou, mediu; teve trabalho, investiu tempo, lapidou a sua obra e fez dela uma obra-prima.
Da mesma forma um escultor: ele não tem que só ter o dom de transformar a pedra bruta em algo belo. Antes ele imagina e constrói, em sua mente, a imagem do que ele vai construir. Pensa cada detalhe, cada lasca de pedra tirada tem um porquê.
Vendo as frases que citei, tenho a mesma impressão: o velho McCarthy não tem um “insight” gigantesco, senta, e escreve tudo aquilo. Não se trata também, é óbvio, de simplesmente escolher palavras difíceis (chanfradura, adernadas, plagas) e sair distribuindo-as ao longo do texto. Percebe-se uma sonoridade, uma beleza plástica. Ele pinta, esculpe as frases, e assim, constrói o romance. Tudo é pensado, cada palavra, cada vírgula omitida, cada palavra diferente, tudo isso faz com que o romance não apenas conte uma história, mas tenha um ritmo durante a leitura, uma poesia, uma graça especial.
Literatura é uma arte. Obrigado, Cormac McCarthy!