DRK 29/10/2024
Bíblia Americana
?Ele diz que nunca dorme?
Li Meridiano de Sangue em outubro de 2024 aos meus 22 anos, saliento essa data e contexto pois tenho certeza de que quando retornar minha leitura, minha visão sobre a obra não será a mesma.
Bem vindo ao velho oeste estadunidense, um lugar violento, mal, cercado de podridão e miséria mas acima de tudo muito belo, com desertos de areia e dunas que refletem as estrelas brilhantes do céu e que compõem a aurora escarlate de um mundo solitário em meio a um cosmos denso e alienígena.
Nesta versão realista e ao mesmo tempo mergulhada em fantasia de Cormac McCarthy, seguimos homens com sede de sangue e perdidos rumando a um propósito mórbido e tudo isso pela perspectiva de uma criança, o Kid.
Um jovem nascido em 33 e que nunca lhe foi ensinado o bem, apesar de saber muito bem o que ele é e de ter o desejo interno de o buscar.
Por partirmos de seus olhos noviços e nada incompreendidos sobre o mundo ao seu redor, muitas vezes McCarthy descreve cenários absolutamente inscrutáveis aos nossos olhos humanos e isso é irado.
Com muitas inspirações nas descrições bíblicas, McCarthy molda cenários como se fossem pinturas, o deserto dele no primeiro terço do livro não verosímil em visual mas em sentimento, transmitindo o que o protagonista, tão recém chegado nesse mundo tão imenso e macabro, concebe.
Esse poder sobre sua própria literatura é absolutamente genial e me pegou de surpresa, pois não é só um livro que narra mas sim um livro que entra na pele de seus personagens, que tenta discorrer o que eles sentem, mas de forma lírica, lúdica e muitas vezes completamente surreal.
O que o Kid é eu prefiro discorrer mais adiante, mas o que importa para essa etapa dessa análise é que ele é um protagonista absolutamente honesto, e que vai tornando o mundo ao seu redor mais e mais palpável a medida que o vai conhecendo em seu âmago, e recebe ajuda para isso.
Na trama, o jovem entra para uma gangue caçadora de índios, não por concordar com essa caçada ou por ter o desejo de vingança pelo o que seu grupo anterior (feito parte pelo mesmo motivo que o sequente), e sim apenas porquê era o único jeito de sobreviver.
Não há caminhos virtuosos, e os que tem, são assassinados por pessoas cruéis e jogados na sarjeta para o esquecimento, o único caminho que ele viu foi fazendo parte dessa dança macabra.
Descritos como ?Uma vista divina de alguma terra pagã alimentamos de carne humana?, o grupo liderado por Glanton e o Juíz caminha sobre aquelas terras perdidas matando, violando e queimando índios (ou qualquer outra pessoa que queiram); isso tudo baseado em fatos: Glanton e seu grupo de caçadores de escalpos realmente existiram e são o mais puro suco do que os Estados Unidos da América foram formados: por genocídios e barbáries.
Não há absurdo em dizer que Meridiano de Sangue foi uma tentativa muito bem realizada de escrever uma bíblia estadunidense, onde todos os percalços que daquela terra se originou estão pincelados.
E dessa razão bíblica e analógica surgiu o Juíz Holden: o maior vilão possível pois ele representa tudo aquilo que o homem é em sua essência: o mal.
Aqui eu preciso entrar no que estudiosos acreditam ser a maior inspiração de McCarthy: o gnosticismo.
Os gnosticos acreditam que o mundo é mal em sua essência e que o bem é um mistério, Como pode haver iluminação em uma realidade material? Como pode haver esperança oriunda da carne?
Essa questão, essa pergunta maldita, essa piada cósmica é o Juíz.
?Ele dança entre a luz e a escuridão?
Um homem de pouco mais de dois metros, albino, corpulento e sem nenhum único pelo no corpo. Ele acredita que a guerra é Deus, que a moral é apenas uma ficção criada pelos fracos para tirar o poder dos mais fortes e que o homem deve domar seu destino ou morrer tentando.
Ele quer apagar a memória do homem, quer apagar a cultura e destruir qualquer centelha de pensamento que renegue a realidade: a dança eterna entre os mais fortes pelo controle do mundo.
E ele transmite suas ideias com amor, adora falar e ser ouvido, adora contemplar o passado e ponderar sobre seu próprio futuro. Ele diz que nunca dorme, e diz que nunca vai morrer? o que isso parece para você?
Kid é o oposto a isso, pelo menos em sua essência. Apesar de não ter sido ensinado sobre a bondade, ajuda pessoas ao seu redor. Apesar de conviver com homens que veem na barbarie o prazer e a motivação sobre suas vidas, não toma parte deste desejo para si, apenas convive com isso, completamente alienígena ao seu próprio coletivo, e é isso que fascina tanto o Juíz.
Holden busca conhecer todas as coisas, pois, segundo ele, apenas assim um homem poderá ser suserano do seu próprio destino? mas ele não conhece o Kid.
Para o Juíz, Kid é tudo aquilo que não faz sentido, é a busca de um sentido no caos e a completa ausência sobre o que rege o homem.
Não há lugar para o bem no mundo que o Juíz quer domar. E o Kid não possuir nome é a estrela do bolo para essa dualidade tão fascinante.
Um homem que quer nomear todas as coisas é incapaz de nomear aquilo que renega a ti mesmo. Isso o deixa com raiva? Acredito que não, só fascinado mesmo.
O Kid definitivamente não é uma pessoa boa, não é essa luz que as analogias acima dele possam parecer que ele seja, mas Definitivamente é uma amostra de um possível horizonte de luz em uma noite sem fim, e que mesmo maculado por maldades e noções desprezíveis quanto a moral, ainda assim não buscava fazer parte dessa dança macabra.
?Ele diz que nunca vão morrer?
Apesar dessa minha perspectiva talvez um pouco ingênua, não há como negar que o mal sempre existirá; o Juíz estava tão contente com o mundo no século 19, imagina o que ele deve ter achado do século 20! E do que ele acharia de hoje do genocídio dos Palestinos.
Não há dúvida de que o Juíz está certo sobre a natureza do homem, é só abrirmos nossos olhos; Nossa história é e sempre será escrita com sangue por mais triste que isso seja.
Mas o mal não entende a bondade, a escuridão não entende a luz, e ela quer ela apagada, quer uma Aurora tardia, tão tardia que nunca poderíamos contempla-lá? e eu não sei vocês, mas se tem uma coisa que me deixa feliz é ver o mal falhando em suas tentativas.
Podemos vencer pouco, mas é nas poucas vitórias que reside a esperança, e não há nada mais poderosa que ela.
Ele pode até dançar, mas quem irá dançar por último eu tenho certeza que não será ele.
McCarthy escreveu uma obra densa e extremamente negativa, e que me fez refletir sobre muitas coisas, principalmente pela natureza do homem, e não há nada que me dê mais prazer num livro do que um autor que me faça pensar.
Ao falecido Cormac McCarthy, deixo aqui meus muito obrigado e que você tenha alcançado seu paraíso. Descance em paz.