Emily422 05/03/2023
O que seria isso no tempo? O que seria Isso e o Tempo?
*eu só queria escrever uma breve resenha, cara
Pensei em divagar acerca do grande personagem dessa história, o qual é subjetivo e eu só fui descobrir a face total no final, e, não, não é a morte, todavia conversa frequentemente com ela. Mas aí, eu estaria me perdendo na imediatez de um futuro que só vem a chegar depois de tudo já ter sido brutalmente mastigado por capítulos semelhantes, tecidos pelo cotidiano. O final é esmagador como um forte extremamente amarelo se destacando do céu azul tunísia, mas só o é, com o maior dos sorrisos a decorá-lo, pois o meio do caminho e os passos militares de uma multidão de jovens foram captados pelas areias do torpor, as garras da espera – o tédio que se não tem seu fim no suicídio, se retroalimenta pela esperança. Mas esperar pelo que? Talvez, indo para algum lugar essa resposta seja provisionalmente respondida; então lá está, um forte razoável para preencher minha cabeça, deixando seus mistérios, suas estações e o encapelar delas, que se tornam remotas e enjoáveis em círculos, perscrutarem uma mudança, formularem inimigos invisíveis que se adequam a tudo que desejo, permitindo um norteamento, ou, ainda melhor, que do próprio norte venha a luta derradeira. Lançar-se à imobilidade ainda é um lançamento? Eu entendo que é, mas dói bem mais – esbarra-se e senta-se abruptamente em uma cadeira de buloke australiano.
Um bolso cheio luz, uma promessa de guerra, um corpo em processo de rigor mortis, a fantasmagoria dos sons, das paisagens e dos móveis, a escrita do Buzzati é de quebrar o coração por uma simplicidade extremamente bela. No começo eu tomei um susto, estaria eu lendo uma Montanha Mágica 2? Longe de querer acusar uma natureza tautológica, na verdade, eu diria que sim e que não. Enquanto o jovem Castorp se enclausura em um semideserto de neve, o jovem Drogo se esfarela em um deserto de fantasmas arenosos, um a uma altitude vertiginosa do topo do mundo, o outro em uma planície preenchida pela nulidade; e o mesmo conselho: fuja, corra daqui, enquanto ainda dá tempo, meu jovem! O Sr. Settembrini, se o pobre Hans já lhe rendia imprecações em italiano, engasgaria em um acesso de tuberculose com tantos xingamentos indignados acerca da loucura indolente de Giovanni Drogo. O caminho em O deserto dos tártaros parece ainda mais brutal, a busca ainda menos justificável, o protagonista ainda mais Estrangeiro.
O personagem joga dados e, assumindo isso, nele há uma cumplicidade, mesmo do começo de sua jornada, perpassando pelo meio e desembocando na visão da porção de estrelas a ele designada, há ora disfarçado pela persistência inconsciente, ora pela consciência de nada lhe pertencer, nada haver a perder, e nenhum lugar a qual retornar, uma desconsideração de possíveis arrependimentos amargos que o futuro desconhecido lhe guarda. "Como uma mariposa em direção a luz", é minha aposta: Drogo sabia. O sabia como Raskólnikov sabia. "Uma força desconhecida trabalhava contra a sua volta à cidade, talvez emanasse de sua própria alma, sem que ele se apercebesse disso". Fica assim aquela certeza hesitante; tudo já estava estabelecido desde o princípio em um vórtice de medo, habituação e tanto tédio 'que você ganha coragem'.
Em certos momentos o demônio do aforismo 341 da gaia ciência surge, estapeia aquele que tem a patente de "mero espectador não contaminado" e pergunta algo próximo de "viveria tudo isso em eterna repetição? Me amaldiçoaria por isso dizer ou me glorificaria por tal dádiva?". Absurda essa perspectiva de continuar sempre nessa mesmice, mas não percebe que assim já o é e talvez vá continuar? Embriaga-se de uma nostalgia por heroicos conteúdos oníricos e evita-se dar de cara com o muro da destituição real.
Em "meia-contraposição", me lembrei de um filme muito bom que assisti no começo desse ano, 'La stanza del figlio' (2001), em que um dos personagens principais, em uma cena brilhante, reflete e se revolta contra a necessidade de agir o tempo inteiro sobre as eventualidades, já que com isso tenciona-se em uma ação constante e pouco contemplativa que se distancia do mundo e da vida. Embora o deserto dos tártaros ponha em questão a todo momento a "passividade", me parece que o faz levando-a às últimas consequências, igualando-a assim à atividade irrefletida, que se destaca do mundo sendo apenas uma existência vazia de sentidos profundos. Logo, não obstante isso, frente a engrenagem imaculada do tempo, há aquela afirmação, por parte da obra, de pausa para contemplar os grãos de areias ou folhas de papel vazias ainda a serem preenchidas – no capítulo VI figura-se uma pintura expressionista que, passando por diversas paisagens e desbotando a vida a cada passo, chega em uma praia de mar cor de chumbo e céu cinzento onde o tempo perdido esperando por um futuro que não pode mais ser recuperado. A causa não foi puramente a passividade, ou pelo menos não a passividade necessária que o personagem do filme põe em evidência, mas sim a falta de tato, a náusea que priva a sensibilidade doentia, a aceleração da espera, que aí sim, sendo uma atividade que é passiva por não conseguir degustar e digerir nada, apenas engole.
Embora Drogo seja o personagem focalizado, acredito que sua face é uma multidão semelhante aos que correm na planície no fim da montanha mágica; em vários momentos da história ele "desaparece", dá lugar a um colega, tem sua face repetida em outro, é substituto por uma curta história ou tem a sua própria facilmente substituída por um clone – embora nisso não signifique que cada um não guarde sua subjetividade, é apenas o fatalismo temporal e sisífico que os iguala tão veementemente. Coube a formação e formalização de um rico e obscuro imaginário: múltiplos uniformes, ou melhor, dezenas, centenas, milhares... milhões... ou uma quantidade de soldados tão vasta quanto o mundo, pendurados, pendendo flácidos em um enforcamento que passou despercebido enquanto iam vivendo.
Com uma ilógica presença que preenche o deserto inteiro, o silêncio profundo, com o não dito acomodando-se na ponta da língua, "nada, nada", responde um tenente com a garganta explodindo de palavras. "Percebemos que estamos completamente sós", não adianta panaceia. Barreira linguística? Não completamente, umas conversas e menos apatia já ajudariam. Um edifício inteiro povoado e é inegociável, a ida é de si para si mesmo. Vem a minha mente a imagem quase cinematográfica de uma ampulheta deitada, na horizontal, com as areias a fluírem criando e inundando um deserto, onde um modesto rapaz sua frio arrastando uma pedra, indo em direção a um norte sempre longevo e nesse segmento precisamos imaginá-lo sorrindo. Chega-se no fim à uma remanescente autenticidade, ao que Clarice Lispector talvez quis dizer com o paraíso não estando depois da morte, mas sim ele sendo ela própria – a alegria mais desregrada que não tem como nos fazer tropeçar já que é advinda do abismo e nele já estamos caindo.