Manuella_3 10/09/2014
Para contar a história da própria vida é preciso coragem. Revisitar amores (bem) vividos e experiências positivas, mas também voltar aos caminhos espinhosos dos insucessos e das dores adormecidas como parte do processo. Nessa reconstrução dos fatos, Cristovão Tezza nos insere no momento ímpar da vida de Heliseu: as horas que antecedem a cerimônia em sua homenagem na universidade onde lecionou por longos anos.
Heliseu é um homem de 70 anos, viúvo, introspectivo e metódico, professor de Filologia Românica. Enquanto tenta formular seu discurso de agradecimento – entre o café, banho e a saída para a celebração -, confabula com o leitor sobre o que deverá falar: sua vida profissional e pessoal, suas dificuldades e fantasmas? Sob sua ótica, em primeira pessoa, intercala presente e passado, saudade e culpa, fragmentando cenas de sua vida pessoal em ideias descontínuas: o casamento fracassado, a relação distante com o filho homossexual, os dias de paixão ao lado de Therèze.
"Permitam-me o breve calor do sentimento, senhores: Mônica, com dois ou três beijos, me devolveu a vida. O que eu fiz com elas, Mônica e a vida, é outra coisa. Chegaremos lá." (p. 125)
É este exame íntimo que recheia toda a narrativa. Num solilóquio envolvente, Heliseu vai unindo pedacinhos da memória e constatando que, ao contrário da carreira brilhante e digna de homenagem, a vida amorosa e familiar foi uma sucessão de quedas, assim como “a queda das consoantes intervocálicas” – sua obsessão como filólogo. A perda precoce da mãe e a desconfiança de que o pai tenha sido o culpado o atormentam. O sentimento de anulação como homem e pai depois do nascimento de Eduardo, o único filho que teve com Mônica. A morte acidental da esposa que levanta as suspeitas do filho contra o pai. O encontro tardio com Therèze, paixão que mescla o amor pela profissão e o envolvimento antiético do orientador com a aluna de doutorado.
“(...) por que, senhores, o professor se encantou por ela à primeira vista? Fechou os olhos, ponderando as possibilidades: um, porque eu estava disponível, o desejo da traição já vinha me tomando a alma há meses, esperando a sua presa, ou o seu momento, embora tudo não passasse de espera - nenhuma iniciativa. (...)É ela que me encontra - não tenho culpa. (...) e voltou a se concentrar em Therèze, que sorria diante dele, as pernas cruzadas, o mesmo sorriso ambíguo de quem pede desculpas mas aposta na própria graça para ser desculpada, a chantagem inocente da beleza: Desculpe, professor." (p. 134)
O autor também utiliza a narração em terceira pessoa, enquanto discorre sobre a rotina automatizada de Heliseu, amalgamando oralidade e escrita num texto que pede a atenção do leitor. Poucos diálogos em 240 páginas de um imenso monólogo interno do professor: é nessa exposição que Tezza amplia a visão dos fantasmas que revisitam Heliseu. Olhando para trás, num curso de memória instável e não linear, preenchendo os espaços que as recordações não alcançam com trechos em português arcaico (outra ideia fixa do protagonista) e fatos políticos do Brasil da década de 80 até hoje, o velho homem vai matutando um discurso de agradecimento e percebendo que busca uma redenção. Sim, agora que a vida deu uma trégua, Heliseu anseia por libertação.
"Acho que todas as pessoas do mundo deveriam receber esta medalha, independentemente do que fizeram na vida, sejamos generosos, deveriam receber medalha só pela oportunidade de, numa rápida cerimônia de acerto de contas, um pré-juízo final, rever a vida em poucas palavras, aquela essência que sempre nos falta, o tiquinho de nada que, se a gente chegasse lá, tudo resolvia com tranquilidade. (...) Deus não joga dados, joga?" (p. 71)
Não é uma leitura fácil, apesar das poucas páginas. O texto é denso, exige envolvimento e compaixão por este personagem tão humano e real. Heliseu tem a coragem de dividir com o leitor as angústias secretas que não soube elaborar. Tudo o que não foi dito ou resolvido é ruminado. Paciência, leitor. Particularmente, personagens que revelam seus segredos me encantam.
Tezza é (usando uma expressão sua) um 'pensador de miudezas'. No auge da maturidade literária do autor premiado, considero este livro uma obra magnífica!
Resenha publicada no blog Ler para Divertir:
http://www.lerparadivertir.com/2014/07/o-professor-cristovao-tezza_2.html