Mr. Jonas 09/02/2018
Riacho Doce
Desde as primeiras páginas, a narrativa de Riacho Doce de José Lins do Rego se apodera de nós, impondo-nos ao seu ritmo.
Em todo ciclo da cana-de-açúcar o que é ação não deixa margem para discussões ociosas, uma vez que apresenta com a força dos fatos consumados, independentes do arbítrio do autor, que é como se apenas os tivesse recolhido.
Por isso mesmo, não se queira sujeitar às regras habituais da construção do romance Riacho Doce de José Lins do Rego e da composição das figuras uma obra nascida diretamente da vida e que, visivelmente, José Lins do Rego não tem, mais do que nós, o poder de alterar.
Ele não é tanto um verdadeiro romancista, mas antes um narrador, o recitador admiravelmente vivo de uma realidade que não lhe é possível senão transpor e revivificar.
Essa conclusão ajusta-se perfeitamente às indicações que o estudo da forma pode fornecer. Para alguns, essa forma é a falta de estilo, seria antes um informe literário, o gênero mal escrito.
Juízo apressado, fruto de lamentável confusão. Por não ser literário, no sentido que hoje se empresta à palavra, o estilo de José Lins do Rego não deixa de existir; é, ao contrário, dos mais característicos, dos mais saborosos, que possuímos.
Apenas não é o estilo escrito a que estamos habituados, mas os dos recitadores orais, haurido diretamente na fonte da linguagem viva. É isso, precisamente, que lhe dita o ritmo da narrativa.
Dir-se-ia, até, que a própria ação nasce, em grande parte, daí: é o estilo oral que atrai e liga os episódios, que delineia os personagens, que dá unidade à obra e em certo sentido a compõe, não como coisa que escreve, mas como coisa que viveu.
É ainda esse estilo que permite ao recitador atingir, como tantas vezes acontece na obra, um plano quase poético, uma interpretação que, no fundo, é lírica, da vida e do mundo das suas criaturas.
A exposição de certos estados subjetivos, tão frequentes e de tais consequências na obra de José Lins do Rego, não é analítica, mas descritiva, e feito nos termos de estilo oral, como que taquigrafado pelo autor, muito mais próximo dos cantadores de todos os tempos que dos romancistas-escritores dos nossos dias.
Em Riacho Doce de José Lins do Rego, reúne amor e petróleo. Um casal de suecos vem para o Brasil, para Alagoas, e a loura Edna se extasia com a força tropical do Brasil, que ela descobre. Apaixona-se por um mestiço nordestino, Nô, uma das figuras mais empolgantes de toda a ficção numerosa e rica de José Lins.
O amor de Edna e Nô é o núcleo desse romance que é um dois mais ardentemente humanos desse contador de histórias inesgotável, impregnado de oralidade.
Seu estilo nesse romance Riacho Doce de José Lins do Rego, é um milagre de naturalidade e de intimidade com a natureza ou integração na própria natureza exterior. Uniu como ninguém memória e imaginação, primitivismo e arte, povo e ficção.
Personagens nativas e rústicas se misturam a essa estranha sueca, fascinada pelo mundo bárbaro e poderoso de um Nordeste que é todo verdade vista e vivida. Mãe Aninha e Nô saltam diante dos nossos olhos como criações exatas, inesquecíveis.
E a sueca misteriosa vem descobrir sensualmente a força telúrica do Nordeste rústico, o ritmo popular, os sabores e os cheiros, as formas, as cores, a vida intensa de uma região que é o mundo perene desse grande narrador em contato amoroso com a vida.
Sem ser porventura uma das suas obras mais individualmente destacáveis, Riacho Doce conserva o mesmo valor documental, a mesma significação crítica, a mesma força novelística e as mesmas belezas das outras obras do escritor.
Em Riacho Doce de José Lins do Rego, o autor nos dá a sua visão possante dos desequilíbrios sociais e dos dramas humanos individuais e coletivos, provocados pelo problema do petróleo em Alagoas. Tudo decorre deste trágico problema da nossa vida contemporânea.
As marés sucessivas de entusiasmo, de desapego às tradições, provocadas pelo engodo da riqueza, e das desconfianças supersticiosas e cóleras nascidas das desilusões naquela mansa terra de pescadores, são descrições de psicologia coletiva das mais vivas e reais que o romancista já fez.
A psicologia de Edna, a fraqueza supercivilizada do engenheiro sueco, a Mãe Aninha que é a melhor análise de psicologia supersticiosa já feita pelo romancista, são todos seres de vida empolgante.
De Nô se dirá a mesma coisa, talvez a figura de mestiço, ou melhor, talvez a figura popular mais delicada, mais impressionantemente exposta em todas as incongruências e males de sua condição, da nossa literatura. Não será mais profunda, mais humana que a do moleque Ricardo, mas é de uma delicadeza incomparável.
E páginas como a descrição dos primeiros tempos de Edna no Riacho Doce, numa linguagem saborosa, ou capítulos como o do estouro da Mãe Aninha, em que a maldição é criada com uma intensidade trágica maravilhosa, são verdadeiramente passos geniais.