flaflozano 01/03/2020
A little taste
O que eu havia feito? Como podia ter sido tão facilmente manipulado? Eu sabia a resposta. Por ser emocionalmente instável quando se tratava de Eva. Eu esperava alguma armadilha da parte dela, ficava o tempo todo na dúvida sobre seus sentimentos e suas intenções, e foi isso que Luiza usou. E deixei, caindo como um bobo, quase chegando ao ponto de fazer uma besteira ainda maior do que já tinha feito.
Cheguei à minha casa em Pedrosa e vi que os seguranças continuavam lá. Entrei rapidamente, nervoso, louco para puxar Eva para meus braços e apertá-la, aliviado por que não me enganou daquela vez, por que disse a verdade. O que podia significar que outras coisas também eram verdade, como o fato de me amar e ter desistido há muito tempo da vingança.
Desci ao porão correndo, meu coração disparado, a culpa me dilacerando, sentindo-me um tolo idiota e louco, um garoto irracional que agia por instinto, não um homem feito. Destranquei a porta e vi Eva na cama, encolhida quase da mesma maneira que eu a tinha deixado, de lado, cabelos sobre o rosto, a corda largada no chão ao lado do chicote e de suas sandálias.
Ela abriu os olhos e me fitou. Senti a dor e a culpa ainda mais latentes me remoendo por dentro, a covardia do que fiz ao arrancá-la de casa daquele jeito, em prantos, com medo, sua luta, seu desespero quando eu disse que não chegaria mais perto de Helena. E ali no chão as provas do que quase fiz com ela, do muito além que eu podia ter ido e a ferido.
Nunca me senti pior na vida, nem mesmo quando descobri quem ela era e como tinha me enganado. Daquela vez, deixei de ser justo, fui um ogro acreditando mais em Luiza do que nela, deixando-me levar por minhas desconfianças e minha aversão por ser traído mais uma vez. E a vítima foi Eva.
Caminhei até ela sem desviar o olhar, meu peito doendo, a injustiça que cometi me deixando doido. Soube que nunca me perdoaria se tivesse tocado nela, se tivesse deixado todo ódio que senti me possuir.
Eva não se mexeu. Não chorava nem reagia e foi isso que fez com que eu me sentisse pior. Sentei na beira da cama, falei baixinho:
- Vamos para casa.
Ergui a mão para segurar seu braço, ajudá-la a se levantar, mas Eva me surpreendeu ao escapar, se arrastando para trás, empalidecendo, dizendo com uma mágoa que doeu dentro de mim:
- Você não disse que nunca mais tocaria em mim?O que está fazendo aqui?
Eu paralisei. E admiti:
- Estava enganado, Eva. Sei que não ligou para sua mãe.
- Sabe? ? Sentou-se na cama, afastando o cabelo do rosto, sua expressão estranha, até mesmo fria, como nunca vi. ? Não tinha tanta certeza que fui eu? O que aconteceu?
- Descobri que foi Cássia. Ela era informante de Luiza.
Apertou os lábios numa linha fina. Estava pálida, com olheiras, as pálpebras inchadas e avermelhadas de tanto chorar. Eu me odiei demais pelo que fiz com ela e aquela sensação era horrível.
- Entendi. Se não tivesse descoberto, não acreditaria em mim.
- Como eu podia acreditar, Eva? Como, depois da maneira como me enganou e traiu?
Ela acenou com a cabeça, sem tirar os olhos dos meus.
- Claro, está com a razão. Minha palavra não é nada. Meus sentimentos não contam. E nunca vão contar, não é, Theo? Você é poderoso e justo demais para perdoar uma falsa como eu. Nunca me deu o benefício da dúvida.Compreendi isso e vou facilitar as coisas para você. ? Ergueu o queixo, sua palidez me assustando: - Pode me entregar à polícia. Vou pagar pelos crimes que cometi.
- Pare de dizer besteira. ? Levantei irritado, correndo os dedos entre os cabelos, nervoso.
- Ora, mas não é disso que estamos falando? Além da falsidade ideológica eu não tenho que responder sobre
a tentativa de homicídio? Pois então, vamos fazer tudo
certinho, como manda a lei. Quero ir para a delegacia agora.
Eu franzi o cenho, com raiva e ao mesmo tempo apreensivo, estranhando seu jeito. Parecia diferente, sem a fragilidade de antes, como se tivesse desistido de me reconquistar e de provar que havia mudado.
- E Helena? ? Indaguei, incomodado.
- Agora você me pergunta por Helena? ? Finalmente eu a vi ficar emocionada, seus olhos enchendo-se de lágrimas. ? Não ia me descartar, me proibir de ver a minha filha? Não me deixou aqui, com os seios doendo e vazando de tanto leite e ela lá, com fome, por causa da sua raiva? Quer que eu acredite que se importa comigo como mãe dela?
Suas palavras foram um baque para mim, me fizeram sentir ainda pior do que eu já sentia. Desci meu olhar a seu peito e os vi mesmo muito inchados, chegando a estar com a pele avermelhada pelo decote. Só então reparei na camisola ensopada de leite, que tinha escorrido e colava o tecido aos seus mamilos. Imaginei a dor que não devia estar sentindo, com os seios quentes e empedrados.
- Eva...
- Eu quero muito estar com a minha filha, mais do que tudo no mundo. Pode me acusar de tudo, menos de não amá-la nem cuidar dela. Mas cansei disso, Theo. Cansei de ser humilhada e sacolejada, jogada nos seus ombros, arrancada da minha segurança, ameaçada! ? Falou alto, furiosa, se tremendo toda. ? Você quase me estuprou!
- Não fiz isso!
- Quase fez! ? Gritou e eu a desconheci, pois nunca a tinha visto daquele jeito, fora de si, em seu limite, vermelha de raiva. Apontou para o chicote que eu tinha largado no chão antes de sair: ? Eu fiquei em pânico achando que ia me espancar e violentar! Por um triz, mas um triz mesmo, não usou esse chicote em mim, como quando me caçou e me pendurou na árvore.
- Eva...
Ali você jurou que respeitaria meu não!
- Eu perdi a cabeça! ? Dei um passo a frente, nervoso.
- Perdeu a cabeça e a vítima fui eu! Fez o que quis comigo! Me largou aqui sozinha! Me deixou apavorada! ? Estava descontrolada, a respiração entrecortada, as lágrimas pulando dos olhos enquanto me olhava com raiva, acusação, decepção. ? Você não é um homem, é um animal irracional! Faz o que quer comigo, mas chega! Está ouvindo, Theodoro Falcão? CHEGA!
Seu grito pareceu vir do fundo da alma e me congelou no lugar. Um medo desconhecido me engolfou e só pude olhar para ela. Eva parecia fora de si, despejando tudo de uma vez:
- Eu cansei! Cansei de ser dominada por todo mundo, da minha mãe me criar sendo uma fraca medrosa, sem opinião própria, fazendo tudo que ela mandava!
Cansei de sair das mãos dela e cair nas suas, que me domina do mesmo jeito, que me usa e descarta, xinga,
humilha, despreza, faz o que quer! Chega! Não quero mais! ? Gritava, alucinada, vindo até mim, seus olhos arregalados, furiosos. ? Eu não deixo mais! Sou dona de mim mesma! Não sou perfeita! Eu errei sim, eu menti, eu me envolvi com você e me enrolei nas minhas escolhas, nessa porcaria de vingança! Mas agora cansei de tentar me explicar e provar quem sou! No fundo, você e Luiza têm muita coisa em comum, só pensam em vocês, não se importam com os meus sentimentos, só me usam pra conseguirem o que querem. E eu idiota, sempre cedi, sabe por quê? Por que sempre fiz tudo o que queriam por amor,por que queria me sentir amada e cuidada. E pra que tudo isso? Se no final sempre quem mais sofre sou eu! Sou sempre a errada na visão de vocês dois. Quero que minha mãe se dane! Quero que você se dane! Quero distância dos dois! Está ouvindo?
Eva empurrou meu peito com as duas mãos, arquejando, como se precisasse me agredir, descarregar seu descontrole emocional sobre mim. Fiquei parado e me empurrou de novo. Cerrou os punhos no meu peito e bateu nele com força, soltando um grito estrangulado, fazendo-me ficar arrasado e muito culpado ao ver seu histerismo.Deixei que descarregasse em mim , entre as lágrimas:
- Prefiro ir para a prisão, seu animal! Quero ficar longe de você e da minha mãe! Vocês estão me matando aos poucos. A Helena... A Hele... na... vai... me esquecer... e nunca... vai ter vergonha... de mim... ? Soluçava, seus socos perdendo a força, se tremendo tanto que seus dentes batiam, a imagem do desespero. ? Por que eu ... não sou boa para ela , não sou boa pra nada e ninguém... não sirvo... não...
- Coelhinha, pare com isso ... ? Angustiado, sem poder suportar ver mais aquilo, sua dor tão latente e dilacerante, eu a puxei para mim e a abracei forte, prendendo seus braços contra o corpo, segurando sua cabeça contra o peito. ? Você é uma boa mãe, eu nunca disse que não era. Helena não vai te esquecer, por que estará sempre com ela.
- Você vai,... tirar a minha filha...
- Não vou. Nunca. Nunca, Eva...
- Você disse... ? Ela mal conseguia falar, tão descontrolada estava, soluçando e tendo espasmos.
- Esqueça o que eu disse. ? Murmurei contra o seu cabelo, agoniado, amparando-a contra mim. ? Estava muito nervoso, disse da boca pra fora. Tem razão, sou a porra de um animal mesmo. Mas nunca vou tirar Helena de você, eu juro. Agora se acalme, por favor. Não vai para a prisão. Vai voltar para casa comigo, para a nossa filha.
- Não... Eu...
- Sim. Vai voltar sim, você sabe que não pode viver longe dela. Nem ela de você. Ela precisa de você, Eva.
Eu quis dizer que eu também não podia viver sem elas, mas me contive, ainda perplexo demais com tudo aquilo, confuso com meus sentimentos, nervoso. Tudo tinha acontecido como uma bola de neve e ainda estávamos abalados demais, em nosso limite, para entender tudo e tomar decisões.
- Vamos para casa. ? Falei baixinho, quase como um pedido, mantendo-a dentro dos meus braços.
Eva ficou quieta, até seus tremores e soluços diminuírem. Então, se afastou de mim e não a segurei a força, embora sentisse uma necessidade suprema de tê-la ainda entre os braços.
Esfregou o rosto, limpando com os dedos, tentando respirar normalmente e se recuperar. Eu apenas a olhei, cansado, ansioso. Até que voltou os olhos muito inchados para mim, também parecendo exausta. Disse baixo:
- Vou voltar por que não posso viver sem minha filha. Mas se me ameaçar de novo, eu mesma ligo para a delegacia e me entrego. Prefiro ficar lá presa, sofrendo e chorando por Helena, do que passar de novo tudo o que passei. Não vou ser mais capacho de ninguém. Por mim, você e minha mãe podem se matar. Estou fora da vida de vocês.
Fiquei paralisado, nem consegui respirar. Eva me olhava com uma frieza que me congelou os ossos. Senti como se perdesse o chão, chocado com as suas palavras.
- Não quero que me toque mais, Theo. Eu estarei naquela casa como mãe de Helena e mais nada.
- Eva...
- Se não for assim, me leve para a delegacia. ? Ergueu o queixo, decidida, gelada. ? Não sou mais filha de Luiza nem mulher de Theodoro Falcão. Sou Eva Amaro, de dezenove anos, mãe de Helena. Acabei de nascer hoje, agora. A outra Eva morreu.