lucasfrk 08/06/2024
Lisístrata ? comentário
?Se vocês quiserem escutar quando dermos bons conselhos e souberem calar, como nós sabíamos, seremos a salvação de vocês.?
Lisístrata, peça do poeta grego Aristófanes, chama a atenção pela sua ousadia e pelo tratamento dos temas ?sexo? e ?emancipação feminina?. Ambientada nos últimos anos da Guerra do Peloponeso, na Ática, quando Atenas estava em situação crítica, a comédia realiza uma reconstrução dos detalhes da vida cotidiana na época clássica. Apesar das inversões de papéis e situações absurdas e carnavalizadas, é preciso, no entanto, ter certa cautela em ver algum lapso de ?progressismo? ou até ?feminismo na peça?. Note, por exemplo, que a motivação das mulheres, que recorrem à abstinência sexual para forçar os maridos a pôr fim a vinte anos de guerra, é estritamente conservadora, de maneira que o ?apelo à paz? se dá mais numa dimensão doméstica (por sinal, ?Lisístrata?, em grego, quer dizer ?a que separa exércitos?). No entanto, numa época em que as mulheres não subiam ao palco, a mais antiga das comédias aristofânicas restantes ainda ressoa no contexto ? mais contemporâneo ? de revolução sexual, de ascensão de movimentos operários, bem como de conquistas dos direitos das mulheres (sendo, então, compreensível essas associações de senso comum).
Aristófanes faz também uma crítica da pólis e à democracia de sua época. Suas cenas eróticas extravagantes não buscam o pornográfico, mas o denuncismo e o apelo à paz doméstica. Aristófanes, todavía, não propõe uma liberação feminina, pois ainda há certo saudosismo de um passado ao mesmo tempo que se ressalta uma quebra da relação familiar. Só pelo fato de 1) o autor associar a figura da mulher ao adultério e ao vício (vinho); 2) de que a única mulher que inicialmente concorda com a resolução de Lisístrata é Lampito, espartana com traços masculinos; e 3) o papel da mulher nessa sociedade ocidental pregressa estar ligada a uma ideia de submissão feminina é que se pode notar, portanto, além da motivação conservadora das personagens ? em manter o ordenamento social como estava antes do conflito ?, estas agem em prol do restabelecimento e da manutenção da estrutura social em decadência devido ao prolongamento da guerra.
Ademais, se na tragédia havia um caráter mitológico, na comédia, está mais presente o cotidiano (neste caso, doméstico). Como Aristóteles disse, em sua poética: ?A comédia é imitação dos homens inferiores; não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo?. A Coleção L&PM Pocket traz a tradução do escritor e jornalista Millôr Fernandes. Apesar de ter gostado do despojamento da tradução do Millôr ? e deixo aqui meu interesse em travar contato com a obras do ex-Pasquim ?, percebo que sua tradução parece ter cortado, ou mesmo omitido, certos trechos, principalmente quando for comparados outras edições (a que eu usei para a epígrafe foi a da Zahar). Mas tradução não é só transcrever palavras e frases para outro idioma, é também um exercício de estilo (o que certamente não falta no texto de Millôr).
?Abram os ouvidos à nossa sensatez, fechem as bocas que já usaram tanto e tão inutilmente. Chegou a nossa vez de apontar o caminho.? (p. 58)